
Não ia te dizer
E p i f a n i a s
Sobre esta história: eu a escrevi, como se diz, de um fôlego só, no primeiro ano da Pandemia.
A atribulada vida de uma mulher de trinta e poucos anos. Que se inicia lá em tempos adolescentes, numa comunidade rural próximo a Viçosa. Zona da Mata de Minas. E já começa de forma confusa.
Depois de um beijo que o paquerador Milton lhe rouba, ela passa a se oferecer e se recusar a ele, a se aproximar e fugir. Como na cena em que, na escuridão de um bambuzal, ela troca lânguidos e molhados beijos com ele. Mas, tendo avançado nos amassos, ela escapa e sai a correr pelas várzeas e plantações, rindo e se divertindo, até se encostar num pé de mamão, já perto de casa, no terreiro da sala.
Ali, entre ofegante e excitada, espera por Milton, que desistira de correr e viera caminhando, aborrecido. No que então ela lhe recompensa com sarros muito mais vibrantes do que bambuzal, deixa que ele até lhe tire a blusa e se delicie com seus seios.
E assim eles vão, num jogo de esconde-esconde. Várias as cenas em que se encontram, se excitam, e depois novamente se repelem. Esse jogo vai afastando-os perigosamente: ela, por não querer se render completamente a um paquerador profissional, um cabeça oca, que nem pensava em cursar a Universidade. Ele, por achá-la esquisita, escorregadia, nariz empinado.
*
Entra em cena Gilberto, filho de um conhecido da família, que vem da distante Mutum, na região do Caparaó, para tentar vaga na Universidade de Viçosa. Ela e Gilberto começam a namorar.
Antes de um desfecho definitivo com Milton, ela articula uma cena em que, toda nua, toma um demorado banho, no riozinho próximo ao bambuzal, sabendo que ele a observa. À espera de que Milton se aproxime e finalmente a possua, misturem suas águas, acabando, de uma vez por todas, com o impasse amoroso-erótico, e principalmente mandando Gilberto embora.
Mas o plano falha, a comunhão de seus corpos e desejos, carinhos e carícias, não acontece, e tudo por conta de um detalhe literalmente mínimo e infantil. E fora tão intensa a promessa, tão excitantes os instantes, lá no riozinho, que o fracasso caiu como uma bomba na vida deles.
O jogo, a farsa da vida deles: tudo isso lhes é mostrado. Muito tarde, veem o quanto fora perigosa a brincadeira deles, e a impotência deles vem à tona, nas suas agora estéreis águas. E para sempre não querem mais nem saber um do outro. Da parte dela, mágoa, da parte dele, raiva.
Ela e Gilberto se casam, vão para o Paraná. Após sete anos, ele morre, vítima dos efeitos de um agrotóxico. Ela retorna, mas não quis morar em São Miguel ou Viçosa, decide viver e lecionar em Ponte Nova, cidade próxima.
*
Lá, ela se integra a um grupo de pessoas diferentes, uma espécie de resistência da boemia, num espaço também diferente, o bar do Odilon, que ficava nas imediações dos antigos bordéis da cidade.
E lá se reúne uma espécie de grupo literário, liderado pelo filósofo espanhol González, que articula também um movimento político radical e ambicioso, o MPO – Movimento Parar o Ocidente. Ela se torna parte desse grupo e se tornará bastante ativa no MPO, depois que se envolver, de forma descompromissada, com Lázaro, braço-direito de González e o prolífico narrador do transcendente e poético Mané e Andreas, do dramático e complexo Isaía, Irma e Baiano e do extenso Passa-Ouro.
Tudo por tudo, a sua vida parece caminhar bem. Conseguiu o que tantos procuram, o tão buscado equilíbrio entre uma enriquecedora quietude e uma vibrante vivência com os outros, principalmente com Lázaro.
Mas eis que Milton reaparece. No aniversário de fundação de um clube de futebol de Ponte Nova, o Primeiro de Maio, que contou até mesmo com a presença do glorioso, perseguido e injustiçado ativista Reinaldo, do Atlético Mineiro, que começara lá a sua carreira.
Milton também lá estava, já casado e pai, morando em Andrequicé, terra de Manuelzão. E o reencontro lhe abala todinha. Traz-lhe uma dolorosa memória do passado. Descobre que nada do que tinham vivido estava soterrado; apenas suspenso no tempo. Mas o que mais lhe dói é vislumbrar aquilo que não foi vivido entre eles, por eles.
Entende que não há outra atitude a tomar, a não ser a de viver o que não tinham vivido. Aceita o convite e vai ao seu encontro, em Belo Horizonte; seria apenas um acerto de contas amoroso e erótico, depois seguiam suas vidas.
Mas ambos estavam enganados. Surpreendente e vibrante, poético e excitante, assim foi o encontro deles – finalmente vivendo seus desejos, carinhos e carícias. Tão intenso que não viram outro caminho senão o de continuarem.
Mas na viagem de volta, pelas alturas de Ouro Preto, terra de Lázaro, uma revelação: ela descobre o quanto esse último era importante para ela. Não, não era mais algo descompromissado. Revive toda a sua história com ele, desde a primeira noite, quando ele a vira cantar uma música dos povos dos Andes. Ela conversa com Lázaro sobre o encontro com Milton, sobre o qual já lhe falara. Eles então se acertam, decidem viver juntos. Fim de sua busca? Não.