
Não ia te dizer
N a s c e n t e s
ÍNDICE
01 - juliana, nós..................................................................04
02 - helena navega pra suas nascentes........................18
03 - surpresa, os de viçosa..............................................28
04 - marcelina, u. e priscila............................................35
05 - helena entende e acata............................................54
06 - helena ainda em nascentes....................................67
07 - chegada ao coração das nascentes........................97
08 - partidas, viçosa.........................................................128
09 - ilídio e eliza.............................................................140
10 - despedidas, ponte nova........................................170
11 - reencontro, com confrontos.................................186
12 - um reverente e incansável filósofo...................206
13 - uma incansável cantoria e epifania..................227
14 - despedidas, última epifania..................................261
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01 – juliana, nós
Pois é, acabamos nos reencontrando antes do que eu previa. Mas eu não tinha como não falar sobre Juliana, a rival tão ou mais poderosa que a Voz. Na verdade, hoje, a Voz não é mais minha rival, já que ajudo Lázaro a escrever as suas histórias, e ele me ajuda nas minhas; eu e a Voz somos aliadas e não rivais.
Mas Juliana, sim, rival poderosa. Juliana, o nó que Lázaro nos trouxe, bem mais complicado de desatar do que aquele nó que eu trouxe até nós, através de Milton.
Antes de ir para Ipatinga, Lázaro trouxe para a minha casa todos os seus escritos, tanto os que estavam em Ouro Preto quanto os de Viçosa. Foi quando li completamente Passa-Ouro: Passa Quatro e tomei conhecimento de sua densa estória com Juliana; e, claro, li as passagens eróticas contidas na história. Quem ler a história, que já concluída mas ainda não publicada, saberá do que estou falando e certamente me dará razão.
E também ficou explicado porque ele nunca me mostrava integralmente essa obra, coisa que lá atrás eu já tinha estranhado. E, ainda estranhamente, tinha me pedido que deixasse a revisão dessa obra para o final, depois que já estivesse em Ipatinga.
Foi um choque. Fiquei perplexa, desencantada, sem norte – mas com muito sul, Sul de Minas, claro, e susto e suor na alma. Depois de tudo o que eu e Lázaro tínhamos conversado e vivido, depois que eu o reerguera de sua paralisia e de seu cansaço, eu imaginava que a nossa ligação seria quase indestrutível, e que nossa vida a dois até mesmo pairava acima do mundo e das pessoas. A leitura do escrito era uma realidade muito contundente para eu poder continuar a conviver em paz com essa certeza, com Lázaro, ou comigo mesma.
E o problema era que aquela ligação com a doce-maliciosa Juliana não tinha acabado. Para além da questão erótica e afetiva, criara-se uma espécie de pacto entre ele e a menina-mulher Juliana. Está tudo lá, no Passa-Ouro; quem ler, e também captar a intensidade e a complexidade da vivência deles, entenderá a razão de minha atribulação.
uma Lolita da Mantiqueira
Resumidamente: Em Itamonte, próximo a Passa-Quatro, Lázaro e Olavo foram apresentados, por González, à família do fazendeiro Altamiro Rezende e Ermelinda, sua esposa e professora primária aposentada. O casal tinha seis filhos, três homens e três mulheres. As Três Irmãs das Terras Altas, ou As Três Graças, as filhas de Zeus com Eurínome, na mitologia grega, como Lázaro as chama, alternadamente.
Por aí já se vê a admiração de Lázaro pelas filhas do fazendeiro. O que não seria nada de mais, em se tratando de Lázaro. O que surpreendeu e admirou foi ele ter a disposição e o desplante de ter encantado e seduzido, no breve espaço de uma tarde, todas as três irmãs, e não apenas uma ou duas delas, no caso as de mais idade, Lena e Priscila, de dezoito e vinte e quatro anos. Mas também seduziu e namorou, e bastante, a engraçadinha caçulinha, Juliana, de pouco mais de quinze anos.
Aí é que é a morada do drama, do meu drama. Pois, em toda sua irrequieta, nenhuma outra jovem ou mulher encantou o sedutor e experiente Lázaro, tanto quanto Ju-Juju-Juliana – no Passa-Ouro é vívido até mesmo o deleite, ou o carinho, que ele sente ao escrever o nome e os diminutivos de sua Lolita da Serra da Mantiqueira. O caso e os momentos eróticos com a doce-atrevida Denise, em Dentópolis, foram fichinha perto do que Lázaro viveu com sua magnética Juliana.
Outro detalhe a ser considerado. As três nada tinham de garotas da roça, tal como eu fui nos meus tempos garota; embora, como eu já tenha desnudado, a minha adolescência não foi tão bem comportada, mas muito aquém da ousadia das três irmãs. Também pudera, eram filhas de fazendeiro e de uma professora, e não de dois lavradores como meus pais, donos de um sítio, embora de tamanho razoável a nossa terrinha.
Eu as conheci por ocasião da passagem delas e de seus pais por Viçosa, à época do suicídio e posterior enterro de Augusto, após aquele célebre cortejo fúnebre de Passa-Quatro a Ouro Preto, que Lázaro narra de forma tocante no referido Passa-Ouro. Após Ouro Preto, elas estiveram em Viçosa, na casa de González e de Tio Bartolomeu, e depois de conversas com meu tio, todos decidiram conhecer a Capivara e dormir umas duas noites por lá.
Fiquei um certo tempo com eles em Viçosa e um pouco na casa de meus pais. Eles dormiram na casa de meus avós paternos, embora Ermelinda e Alatamiro tenham feito forte amizade com meus pais, tal como acontecera com Tio Bartolomeu e Tia Cristina. Mas, esse pouco tempo de convívio foi o suficiente para estabelecer amizades e descobrir afinidades, principalmente com Lena e Priscila. Quanto a Juliana, eu a vi apenas como a adolescente que era, embora com uma certa singularidade, um certo mistério e faceirice.
Ai de mim, imaginasse eu o que já havia rolado entre ela e o famoso Lázaro (que, reforço, eu ainda não conhecia muito bem) e teria entendido que a doce Capitu, de nosso Machado, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” também seria fichinha perto de Ju-Juju-Juliana. Teria entendido muito bem aquela poderosa mistura da cristalina faceirice da menina com a obscura força da mulher.
Engraçado, isso de tê-las conhecido, e especialmente Juliana, antes mesmo de ter contato com Lázaro e de tê-lo deixado entrar em minha vida de forma tão intensa. Mas o que não é intenso com Lázaro?
*
Mas noves fora, nada. Até então, nada eu tinha ver com o envolvimento delas com Lázaro, com os flertes de U. com Priscila e os de Ilídio com Lena, como Marcelina me contou depois. Tornei-me uma amiga distante delas, e me coloquei à disposição para ajudar em alguma coisa, caso Lena e depois Juliana de fato viessem estudar e morar em Viçosa, conforme pretendiam. Priscila já estava se formando em Direito, em Juiz de Fora. Mas tinha vontade de trabalhar em Viçosa, fazer companhia às irmãs e frequentar o grupo de amigos que se reunia em torno de González, detalhe que somente venho a saber agora.
Como também somente agora venho a saber que Lázaro influiu fortemente nessa disposição de Priscila, e depois Lena e Juliana, começar a se envolver com o grupo e com o MPO – o movimento do qual somente vim a fazer parte depois. Até nisso, elas se anteciparam a mim. Enfim, era todo um conjunto de situações que as atraiu pra Viçosa: a Universidade, o MPO, González, amigo antigo, espécie de padrinho delas, e Lázaro, claro. Todas tinham se envolvido e se entregado a ele, embora com Juliana ainda não tenha havido sexo. Lembrando, novamente, que isso aconteceu há mais de um ano e, portanto, não me dizia respeito e, mesmo hoje, não deveria me incomodar.
Ocorre que.
De fato, com relação a Priscila e Lena, nada me incomoda. Não as vejo como ameaças, como levianas rivais a mendigarem e correrem atrás de amores e erotismos alheios. Houve o tempo dele e delas, dele com elas, e foi um tempo mágico, vibrante, para Lázaro e para elas.
Nossa, aquela cena de Lázaro e Lena na cachoeira da fazenda delas, em Itamonte, quando ela entrega a ele a sua virgindade, logo na tarde em que se conhecem, e a cena de Lázaro com Priscila, no bambuzal e em meio ao nevoeiro, no alto de Ouro Preto, deixaram-me fascinada. Poesia, força amorosa e libido em estado puro. Ele e Priscila somente se amaram eroticamente após mais depois de uma semana do primeiro contato na fazenda. Tá tudo nos dois volumes do Passa-Ouro. Confesso, masturbei-me.
Mas Juliana, sim, presença que embora distante ameaça-me. Ameaça, medo e perplexidade.
Com Juliana não houve sexo, ao menos até o momento, pelo que González me afiançou. Mesmo porque, seus quinze anos e alguns meses, embora Denise, de Dentópolis, tivesse cerca de dezesseis à época de seus tórridos encontros com Lázaro.
Na verdade não é questão de idade. É bem mais complexo e refinado, tanto do lado dele quanto do dela. Juliana faz parte de um movimento católico, que busca, não a preservação da virgindade em si, mas uma espécie de reverência da sexualidade, de espera do tempo erótico próprio de cada uma, ou de cada um. Não à toa ela e minha prima Marcelina se reconheceram e se fizeram logo amigas e confidentes, embora a diferença de idade.
Somente isso já bastaria para me preocupar, pois com certeza Lázaro viu extrema densidade e personalidade nessa postura de Juliana. Atente-se. Uma garota morena, de corpo atraente, cheia de faceirice e de doçura, a sedução desabrochando, um certo ar de mistério, enfim, tendo tudo para envolver um homem mais velho, a quem ela admirava profundamente - as três irmãs já conheciam os livros de Lázaro e Olavo, esse foi um dos motivos que Gonzalez os levou até lá, a pedido delas, além de cumprimentar e rever seus amigos Altamiro e Ermelinda e abraçar suas afilhadas.
Ilídio contou-me que Juliana receberá, em um ou dois anos, autorização dos pais dela, para vir morar e se preparar para o vestibular, na Universidade de Viçosa.
As suas irmãs das Terras Altas já estão vindo para Viçosa – Priscila em breve abrirá seu escritório de advocacia, em parceria com um irmão de Jean. Lena fará o próximo vestibular para Pedagogia na UFV, junto com sua inseparável amiga e prima Adriana. E Juliana, como adiantei, ainda não tem a concordância dos pais para estudar e viver em definitivo em Viçosa, preocupados com uma garota de tenra idade, numa cidade tão mal afamada quanto Viçosa, nesses quesitos de hímens e virgens rompidas.
Além disso, intuo outra razão – coitados de Altamiro e Ermelinda, perder assim de uma só vez a envolvente companhia de suas três filhas. Então, Juliana vive num constante vaivém entre Itamonte e Viçosa, sempre que lhe permitem.
E, agora intensamente envolvida com Làzaro, eu me senti traída e perdida no meio de tudo isso. Jamais esperaria essa atitude de sua parte. Não há como eu dizer aqui da intensidade do meu choque e de minha perplexidade. Como disse, somente quem acompanhou a ligação de Lázaro e Juliana, lá no Passa-Ouro: Passa Quatro entenderá completamente todo o calvário afetivo e existencial pelo qual passei nas semanas seguintes, depois que tive acesso a todo o seu escrito.
Afinal, Juliana ainda está presente na memória afetiva e erótica de meu companheiro. E isso de forma reverente e transcendente, não leviana ou aventureira, o que torna tudo mais complexo e perplexo para mim. Foi esse o recado que ele quis me passar, ao fingir que esqueceu os trechos, até então escondidos, em minha casa. Uma maneira pusilânime e covarde de me mostrar a sua verdade oculta, convenhamos. Poderíamos muito bem ter tratado do assunto de forma reverente e grandiosa, como sempre fizemos com os nossos problemas, inclusive em relação ao meu erotismo tardio com Mílton, que foi um dos temas centrais no primeiro Não ia te dizer.
o ciúme excita e desespera helena
O que me queimava o corpo era uma estranha sensação, quando imaginava Juliana, naquele exato momento, possuindo o corpo de Lázaro, e então eu era tomada por uma mistura de ciúme e de desejo, que me humilhava e me excitava, ao mesmo tempo. Pois, como sói (e como dói isso) ocorrer nessas situações, não era apenas o corpo de Lázaro que Juliana possuía, mas principalmente a sua pessoa.
Quer dizer, para ser possuído, primeiro é preciso aceitar essa posse por parte da outra pessoa, depois é preciso agradar, alimentar essa posse ou desejo, tudo isso culminando na submissão da pessoa, e não apenas do seu corpo, à posse, à vontade de quem possui. Claro, é uma via de mão dupla, pois alguém que é possuído também é alguém que possui. E se havia ou não sexo isso não fazia diferença, tamanha a intensidade e diversidade e liberdade erótica entre os dois.
Então, a pessoa traída é jogada num verdadeiro e contraditório turbilhão de emoções e desejos. A mais visível, claro, é a mistura de raiva e desencanto. A perplexidade pela facilidade com a qual o outro exerce a sua liberdade de nos trair, de doar para outra pessoa aquilo que deveria doar apenas a nós; a tristeza com a leviandade com a qual o outro quebra o nosso pacto silencioso-amoroso. Mas, para tornar o turbilhão verdadeiramente contraditório, há ainda a presença do desejo, digamos, por procuração.
Eu confesso que desejava Lázaro através do desejo de Juliana. Mais eu a imaginava com ele – as suas posições preferidas, os seus gemidos, a sua forma de gozar – mais eu me excitava, como se o desejo e o gozo dela fossem genuinamente meus. Mais ainda, como se aquele desejo e gozo por procuração fossem mais genuínos e profundos do que os meus, quando estava com Lázaro.
Isso contribuiu para me deixar ainda mais atormentada. Eu não sabia se isso era uma reação normal, numa situação de disputa amorosa, ou se seria uma espécie de patologia, ou perversão sexual, de minha parte. Nunca me acontecera isso, nem na adolescência, com Mílton, nem durante o casamento com Gilberto, nos momentos em que eu tinha quase absoluta certeza de que ele já se envolvia com alguma outra mulher.
*
E o que me queimava a alma era uma tristeza incessante, que às vezes trazia consigo uma angústia ardente.
Passei os dias recolhida, bastante afastada de minhas amigas e do Odilon, a pretexto de estar envolvida com as obras de Lázaro. Mas os passei, principalmente, em andanças sem rumo pela cidade: nas proximidades do rio, nas saídas da cidade, em bairros e ruas que não conhecia. Algumas vezes ia de carro, mas preferia ir a pé ou de ônibus. Parecia que assim eu me sentia menos sufocada.
E nesse meu labirinto de andanças, tudo no mundo se tornava, não digo cheio de tristeza, mas sem graça e meio que hostil; como se fosse o mundo que estivesse morrendo, como se não fosse eu que estivesse a sangrar.
Entristeci-me em definitivo. Fechei-me. Sozinha.
E então foi que chorei. Pela primeira vez desde que soubera.
Precisei me fechar para tudo no mundo, para conseguir chorar. Precisei da pureza de minha dor e de meu abandono. Como se precisasse da pureza da dolorosa nascente que vinha lá de dentro de mim.
E chorei muito, ora discretamente, ora às escâncaras (nossa, nisso de escrever aprendi tanto com Lázaro) quando estava em casa ou isolada das pessoas.
E, o que eu sentia, além da tristeza que derretia, era um imenso, latejante e quase selvagem desprezo para com Lázaro e sua cretina adolescentezinha.
E, numa tarde cinzenta, pesada (tanto quanto eu), já escurecendo, debruçada sobre a balaustrada do meu já íntimo Piranga, eu chorava com força, com vontade, sentia-me quase como um rio lacrimejante. Chorei tanto e tão incessante, que parecia que muito de minhas lágrimas caíam diretamente nas águas do Piranga
os sedutores perigos das lágrimas
Mas, naquele espaço de tempo, nos minutos em que discreta me debulhei em lágrimas, em minha delirante imaginação eu ouvi, bem lá nos meus machucados dentros, que o Piranga me dizia que o choro e as lágrimas podem ser enganosos e traiçoeiros. Não fazem sempre bem para quem sofre, como pode parecer. Não entendi, claro, e em silêncios clarezas lhe pedi, embora ele meio que turvo, ou amarelado.
E soltei a imaginação, e era como se de fato o Piranga me falasse. Ele me advertiu do adiantado da hora. Ao que retruquei que tempo de sobra e medo nenhum. E lhe disse que não havia muito o que perder na vida.
— Mas, lacrimejante Helena, é desse perigo que digo...
E soltei a imaginação, e era como se de fato o Piranga me falasse:
— As lágrimas, elas te atraem e depois te traem, com mansidão e voz de proteção... Te buscam, mas te conduzem para cada vez mais fundo... Você se sente tão bem, como que envolta em terno e eterno casulo, como que em revisitado útero materno... Ali, você está em paz, pode chorar e se mostrar à vontade, já que já nada mais lhe resta... Somente você e você e suas lágrimas... E é tão bom estar ali, pois é o único lugar que você acha que pode estar... Aquela mistura de doçura e tristeza, que parece infindável, que parece te chamar cada vez mais para um terno e protetor poço sem fim...
Era tão bom fingir que ouvia de fato aquelas imaginárias palavras do Piranga. Parecia González falando:
— E aí, então, o perigo, a armadilha das tão doces lágrimas... Você chora, chora e chora... E se sente reconfortada e se sente renascida... Afinal, religiões e psicologias, e talvez até mesmo filosofias, te ensinaram que aquilo é bálsamo espiritual ou então catarse, desabafo, esvaziamento da mente, da pressão existencial... González e os outros três filósofos do seu grupo, incluindo o seu Lázaro, até mesmo dizem que é uma forma de reverenciar, compartilhar da solidão de Deus, ou do Mistério... Então, o seu choro estaria legitimado, sustentado, por forças, conhecimentos e sabedorias tão diversos... Você chora, chora e chora... Mas, balela, perigosas tolices tudo isso... Pois eis que, se você chora em excesso, se você permite que a dor te possua por inteiro, então você percebe, no chamado das lágrimas, um sutil e maligno magnetismo... Sim, que chorar é bom, é vital, é redenção e repouso, como dizem psicólogos, poetas e filósofos...
— Mas o excesso de bem-aventurança, ofertado pelas lágrimas, pode ser violentamente perigoso, traz consigo uma sedução que pode ser mortal... Pois que você pode nunca mais querer sair de lá, daquele constante útero lacrimejante... Claro, por mais demorado seja, você interrompe aquela sessão de lágrimas, por uma razão ou outra, a vida ou alguém te chama, pessoas passam por perto etc... Mas aquilo se gruda em você, aqueles instantes de lacrimejante cascata, como vivido por você há pouco, doce Helena, podem chamar você de volta, e cada vez com mais frequência... E você vai, e você quer, e você vai e você quer, porque você precisa, porque você entende que o mundo e a vida já não lhe oferecem um mundo e uma vida...
— E passam as horas, os dias, as semanas, às vezes até meses, e você se habituou, fez seu habitat naquele útero lacrimejante... Você está sempre chorando, de hora em hora, de dia em dia, de semana em semana, tanto faz a frequência, a regularidade... O fato é que as lágrimas e o choro te ganharam, você entregou a sua vida a elas, você não soube, não quis, ou não teve como se defender, não teve alguém para te defender, para te arrancar de lá, do poço e do útero das lágrimas... Pois, afinal, aquela pessoa que poderia te arrancar de lá é exatamente aquela que serviu de motivo para você comungar em definitivo com o choro, a dor, as lágrimas...
Era tudo tão real que quase pedi a opinião do Piranga, sobre Lázaro me deixar no poço da dor. Mas as imaginárias palavras magnetizavam-me tanto, que eu não ousava interrompê-lo:
— E, então, pronto: está tudo consumado! O suicídio, ou uma enlouquecida paralisia, é questão de tempo... Sim, você se matará, talvez até mesmo se atirando aqui, no meio de meu leito, assim será menos traumático, para que minhas águas te embalem e te carreguem, mundo afora... Mas carregarei apenas o seu corpo, pois que a sua vida já não estará, não mais estará no mundo, no Ser, estará apenas no Nada...
— É mesmo dessa forma, sofrida Helena, que queres continuar a navegar comigo, apenas como um corpo em decomposição? Tens certeza de que essas suas cascatas de lágrimas são assim tão benignas, se você continuar a habitar nelas, a viver delas e para elas? Helena, doce e perplexa Helena, responde...
E eu respondi, respondi de verdade, com palavras audíveis, embora discretas, se bem que não pessoas próximas:
— Não, não e não! – e no que falei, no que me abri para o mundo, eu então acordei de meu delírio.
helena se levanta, volta à tona
E então eu acordei, eu me ancorei em mim e no rio, eu vi o rio e o rio me viu, o outro - o rico rio do real, tomando de empréstimo essas ricas palavras do Dala – não o imaginário rio que me incutiu palavras tão apavorantes, embora magnéticas para quem sofre até o chão, até a última poeira de sua alma.
O rio me sorriu, permitiu que eu visse novamente a sua incessante e líquida alegria, mesmo numa tarde cinza.
E o rio me reabriu o mundo, me reabriu para o mundo, Como se o Piranga, durante toda a minha atribulação, houvesse me acompanhado, observado e alertado a todos os entes do mundo sobre o meu desamparo, pedindo aos outros que relevassem, aguardassem, amparassem-me.
Mas o rio advertiu-me: que eu voltasse para ele e para as coisas do mundo, sob o risco de me afogar nos meus revoltos redemoinhos de lágrimas e tristezas.
Fosse lá o que fosse, que fazia brotar aquele falso rio dentro de mim, com sua traiçoeira e algumas vezes fatal sedução (suicídio, a palavra) seria uma traição de minha parte abandonar, ver como hostis e principalmente deixar de cuidar dos entes do mundo, com a devida reverência, tal como eu já aprendera com Lázaro, González e os outros.
E, de fato, algo de bom brotou, ou rebrotou em mim. Lento, mas confiante. O mundo não se me tornou novamente vivo e vibrante de um momento para o outro; mas houve, tanto de sua parte quanto da minha, uma promessa de reencontro, paciente, confiante.
Promessa sustentada e garantida por ele, o rio. Que já tinha me dado tanto, desde meus solitários, mas amenos passeios, a acompanhar as suas águas ao longo das balaustradas do centro de Ponte Nova, até àquela primeira Epifania com Lázaro, nas suas várzeas fora da cidade, na saída para Belo Horizonte.
E o rio me dizia. E o rio me sugeria - como se fosse um filósofo, tal qual González. Que, se eu me sentia tão assim no estrangeiro, talvez fosse preciso eu retornar novamente às nascentes. Antes de me reencontrar com ele e com os entes do mundo. Antes de prosseguir viagem. Tal como ele, que era sempre foz e mar, e era também muitos rios ao mesmo tempo, tinha lá suas milhares de nascentes.
Eu precisava voltar às minhas nascentes, às minhas terras. E, claro, ao ribeirão São Miguel, com suas minas nascentes nas terras de meu avô Alfredo Miranda. Que se encontrava com o meu Casca, muitos quilômetros depois. O Casca que, bem mais longe ainda, se encontrava com as águas do Piranga e do Rio do Carmo, depois que esses dois formavam o Doce, para todos juntos prosseguirem na sua incessante e líquida tarefa, até o mar.
E o rio parecia que me dizia que um pouco de minhas lágrimas ele carregaria e entregaria ao Casca, como sinal de solidariedade a mim, mas, em troca, também como sinal de exigência do Casca para eu cumprir a tarefa de meu reencontro com o mundo.
O meu rio de Ponte Nova me lembrou: o meu rioda Capivara, que passava tão lá perto de minha casa, alguns pastos à frente, ainda adolescente. Era o que me faltava: inspiração para retornar às minhas nascentes e depois prosseguir na tarefa de existir e testemunhar, com ou sem Lázaro.
Dali saí, então, decidida. Menos decaída. Menos desamparada, a ferida já menos sangrando. Quase um leve sorriso de agradecimento e confiança, ao caminhar calmamente para casa.
*
Embora não soubéssemos quanto tempo Lázaro precisaria permanecer em Ipatinga, ficara acertado que ele viria a Ponte Nova a cada duas, três semanas. Tanto para nos encontrarmos, misturarmos nossas águas e nos mordiscarmos, quanto para ele trocar opiniões e passar informações para González e para nós, acerca de Juvenal e do MPO. Na verdade, depois de tudo saber sobre ele e Juliana, eu nem mesmo duvidava de que aquela súbita partida para Ipatinga fosse mero pretexto para se encontrar com a doce-atrevida Juliana, lá em Itamonte.
De qualquer forma, nada havia a fazer até que ele viesse a Ponte Nova. Foram os dias mais tristes e agoniados de minha vida. Sufocava-me de mágoa e de perplexidade.
*
Relembrava mais e mais os meus ais, quase fatais.
Perambulei alguns dias como alma penada e quase suicida pelas ruas de Ponte Nova. Mas tão forte eram a perplexidade e o medo da perda de Lázaro, que logo logo corri de volta para minhas nascentes, refugiar-me nas minhas fontes primevas. Mesmo porque precisava cumprir minha palavra com o Piranga, que me salvara do salto no Fatal. Corri para minha família, minha terra, minha gente ancestral, tão intensa era a quase náusea de meu quase total desamparo, no meio do mundo. Juliana e Lázaro eram-me como uma ameaça difusa, indefinida, mas presente, constante.
Aquele trecho, em que narro minhas perplexas perambulanças pela cidade e minhas solitárias conversas com o Piranga, marcou tanto a minha vida – o flerte com o suicídio – que até gostaria de repeti-lo aqui, reescrevê-lo para mim mesma, letra por letra, vírgula por vírgula. Assumiria sem problemas o risco de ser repetitiva. Mesmo porque, aprendi com meu Lázaro dessas liberdades e redundâncias barrocas. Mineiramente barrocas. Ouropretanamente barrocas. A barroca Ouro Preto de meu Lázaro. Mas não faz sentido, pois o texto está bem ali atrás. Mas que dá vontade dá, seria como um alimento e abrigo para mim.
02 – helena navega para suas nascentes
Fui rumo ao que o Piranga me segredara. Fui em busca de minhas nascentes e de meus colos, tão antigos de aconchegos como qualquer outro. Fui para minha terra.
Numa quarta-feira, fui passar alguns na dias em casa de meus pais, na Capivara, e, depois iria para a casa de tio Bartolomeu, em Viçosa. Tanto num lugar como noutro, aprofundei minha ligação com Ilídio, na verdade amigos pela primeira vez em nossas vidas; e me reaproximei de minha prima e afilhada Marcelina. A partir daí, nós consolidamos de fato uma amizade e uma cumplicidade de primos.
Mas somente me encontrei com eles depois, fui direto para a Capivara. Alguns dias depois que cheguei, ainda passei três ou quatro dias meio abatida; quase não saí de casa até a segunda-feira. Na sexta-feira, visitei minhas duas irmãs a pé, pertinho. E com elas não fiz questão de esconder nada, até mesmo para desabafar. Contei as idas e vindas de minha vida com Lázaro, o súbito aparecimento de Milton, a ilusão do reencontro e, enfim, eu e Lázaro nos acertando, misturando nossos rios, como gostávamos de chamar nossa história amorosa, expliquei a elas. E por fim, falei da verdadeira ameaça que a jovem Juliana representava para mim.
Pois não era apenas um casinho. Como se já não bastasse ela ter apenas dezesseis anos, ser bela e sedutora, a relação de Lázaro com ela era algo forte, que ia para além da atração sexual. Era uma espécie de compromisso para cuidar dela. E, por fim, tentei citar de memória alguns trechos das cenas eróticas entre os dois, que Lázaro descrevera no Passa-Ouro: Passa Quatro. Riram, e acharam fortes e bonitas, sem querer me magoar. Mas o mais angustiante era que, depois de telefonar para Ilídio, ele confirmara que aquilo era real, não eram invencionices literárias de Lázaro, e, pior, Ilídio me informara que Lázaro estava para decidir sua vida de uma vez por todas: ou Juliana ou eu.
Aí é que estava o problema. Pois eu passara, e passava, por duas fontes de angústia. A primeira fora descobrir a presença de Juliana na vida de Lázaro, aquilo que me deixara perplexa, me destroçara; não que eu considerasse como uma traição de Lázaro, já que Juliana aparecera na vida dele primeiro do que eu (engraçado, somente ali na Capivara é que eu vira as coisas assim), mas sim pelas expectativas que Lázaro criara para nós. Essa a primeira fonte de angústia e desolação.
A segunda era exatamente em função daquilo que Ilídio me informara: eu tinha que estar preparada para a escolha de Lázaro, fosse eu ou Juliana. Isso era angustiante e ao mesmo tempo humilhante. Claro que se ele estivesse em Ponte Nova, eu o chamaria para uma conversa imediata e decisiva, não me prestaria a esse papel. Mas tinha que aguardar até o outro sábado. Por isso fora para a minha terra, minha gente, minhas nascentes.
Elas compreenderam perfeitamente e, na sabedoria de sua simplicidade, disseram que, com ou sem Lázaro ao meu lado, parecia que eu precisava fechar um ciclo na minha vida. Um ciclo que começara com minha partida para o Paraná e, depois, com meus anos de Ponte Nova. E começar outro ciclo, no qual eu estaria mais presente na minha terra, minhas nascentes, como eu dizia, mesmo que continuasse morando em Ponte Nova. Ou em Viçosa, se fosse o caso, afinal a maior parte dos meus amigos não se reunia na casa do tal espanhol?
— Nada é para sempre.
E terminaram dizendo que muita gente sentia falta de mim, principalmente Marcelina, que estava um encanto de doçura e simpatia, e que reclamava muito de minhas ausências, nem parecia que eu era sua madrinha. Essas conversas me fizeram muito bem, mas ainda não dissiparam minha tristeza e incerteza.
No sábado, não tive coragem de me recusar a acompanhar o pai numa ida a São Miguel, mesmo porque garantiu que seria coisa rápida; ele entendeu que eu tinha lá meus motivos para não ficar encontrando conhecidos ou parentes. Fiquei quase todo o tempo dentro do carro. O que foi uma pena. Eu tinha tão boas lembranças de nossas idas, aos sábados de manhã, a São Miguel, aquela mistura de dia de semana com feriado, aquele movimento de gentes e comércios que parecia mais festa do que trabalho.
No mais dos dias, eu ficava mesmo era caminhando perto de casa, subindo o pasto, acordando cedo para ajudar na ordenha do leite. E, claro, visitava quase todos os dias o ribeirão São Miguel, o munho, a roda que o girava, com suas pás de madeira tão antiga. Mas não o fazia, em momento algum, por lembrança ou saudade de Milton e daquela tarde em que fiquei nua no remanso do ribeirão. Milton era distância, Milton tinha sido; agora era Lázaro para sempre, apesar de Juliana. Apenas o visitava porque era meu ribeirão, uma de minhas nascentes, a nascente líquida. Mas eu sabia que teria ir até outra nascente – as águas do Rio Casca.
Para mim, era terrivelmente séria aquela conversa silenciosa que eu tivera com o Piranga, naquela tarde de lágrimas e desespero. Fora a aura do Piranga que me tirara da descida, talvez fatal, e me devolvera o mundo, ao mundo, aos entes. Pode parecer meio delirante, para quem assim o quiser, mas, para mim, era terrivelmente verdadeira aquela mensagem que as águas do Casca haviam me enviado, através das águas do Piranga.
Para que eu o visitasse e o visse e o sentisse também como uma de minhas nascentes líquidas, e não apenas as águas do São Miguel, que corriam nos fundos de minha casa, nos fundos de minha alma. Enfim, por aí se vê que Milton passava muito longe de toda essa atmosfera mística, líquida, transcendente. Nem mesmo me excitei com as lembranças de minha líquida nudez naquela tarde.
No domingo comecei a me soltar mais, certamente pelo animado almoço, com as famílias de minhas duas irmãs e meus dois irmãos presentes; eu demorava muito a aparecer depois que comecei minha estrada com Lázaro, merecia-se uma comemoração. Claro que ouvi indiretas e queixas, em relação ao meu afastamento da família, sendo que Ponte Nova era relativamente perto; e, como se não bastasse, meus muitos anos no distante Paraná.
Para combater o bombardeio familiar, garanti a todos que passaria a vir com mais frequência, o que realmente eu pretendia fazer. E também os convidei para me visitarem, lembrando-lhes que, naqueles cerca de três anos que morava em Ponte Nova, somente pai e mãe, e meu irmão mais velho, sem a esposa, tinham me visitado, e isso apenas uma vez.
Eu me espantava com a naturalidade e a sinceridade com que me comprometia em vir mais vezes, e a sinceridade com que os convidava a me visitar. Havia um senso de urgência naquele compromisso e naqueles convites. Como se fosse um pedido de socorro. Ou, de um ponto de vista menos trágico, como se fosse o começo de minha volta às minhas nascentes, tal como sugerida por González, em nosso conversa à beira do Piranga, e também como sugerida pelo próprio Piranga, em nossa conversa silenciosa.
lavar a alma e o corpo no Casca
Enfim, na terça-feira pedi ao pai que me levasse até a beira do Casca. Mas não de carro, e sim de charrete. Como algumas vezes fazíamos, quando criança, mormente em tempos de enchentes e chuvas. Um dos meus escritos, que mostrei a Lázaro, fala da magia de uma dessas viagens de charrete, na enlameada estrada do Cocais.
Agora não eram ainda chuvas, mas quase mesma a magia, embora eu ainda sangrando. Mas o sacolejo do cavalo na estreita estrada, as paisagens vistas ora do alto, ora nas várzeas, as conversas com pai, as revistas pessoas e casas, e, principalmente, aquela sensação de vagar num tempo e num mundo à parte. Tudo isso fazia estancar e mesmo esquecer a ferida, apesar de Juliana.
O pai, por óbvio, observava e tirava suas cismas. Olímpio Rodrigues era o nome do pai, e sua família era lá de Paraguai, distrito de Cajuri, mais para os lados de Coimbra, cidade que o pai de João Branquinho tinha casa, embora passasse a maior do tempo em nas suas terras de Monte Celeste. Sem precisar tocar no nome de Lázaro, meu pai já sabia o que comigo ia. Eu tinha me aberto um pouco com a mãe, mas ainda sem entrar em detalhes, apenas mencionado uma antiga ligação de Lázaro. Mesmo porque, achava que Ilídio já tinha dado com a língua nos dentes, com a sua interpretação, claro.
E finalmente, num trecho mais aberto e plano, o Casca deu as caras de verdade, ou melhor, as águas. Ele e a estrada do Cocais não corriam muito em paralelo, claro, havia aparições e sumiços, pontes e curvas, barrancos e matas, a aproximarem e afastarem rio e estrada.
Era mágico o meu retorno por aquele trecho de minhas raízes. Eu de nada mais precisava, além daquilo: o rio, estrada, o pai, a charrete, as pessoas, pastos e matas; e a manhã, claro, clara. Por falar em pessoas e altos pastos, estávamos bem próximos do sítio do pai de Jandira, Pedro Farias. Talvez fosse lá noutra ocasião, não naquela celebração.
Ao invés disso, pedi a pai que parasse, num lugar o mais perto possível do Casca, para que eu pudesse tocá-lo e bebê-lo. E principalmente senti-lo e reverenciá-lo, pedir-lhe, silenciosamente, que comunicasse ao nosso amigo Piranga que eu ali estava.
O pai escolheu uma ponte, mais ou menos baixa. Ajudou-me a descer até a beira do Casca. Mas, perto da ponte, ele era um pouco encachoeirado e de acesso mais complicado. Por isso andamos um pouco mais para baixo, pai a me proteger, cortando galharias e matos. E ali pudemos ter fácil acesso às suas águas.
E aí o meu ritual. Que na verdade não era nada disso. Mesmo porque eu nem sabia por onde começar.
Bom foi que o pai foi à frente, acocorou-se na beira do Casca, lavou as mãos e o rosto, abundante, prazerosamente. Levantou-se, sentou-se numa pedra próxima e falou um pouco de coisas e casos: o vasto mareoso presente das enchentes, roças destroçadas, pontes carregadas, a nadação de meninos e meninas, que vinham de longe no tempo do calor, a abundância de peixes no antigamente.
Depois se calou, à minha espera. Mas apenas sentei-me perto dele, eu também à espera de mim mesma, ambos olhando para o Casca.
E aí a saltitante surpresa: eu olhava as águas do Casca exatamente como olhava as do Piranga, em Ponte Nova. Como se quisesse agarrar um pedaço ou porção delas com o olhar; mas à diferença de que, agora, já não mais para acompanhá-las, prendê-las em minha memória ou reter seu destino, e sim para mergulhar nelas o meu olhar, meu cuidado e minha reverência, aceitando em paz a sua líquida e intérmina inconstância, diluindo meu ser-olhar no ser- deslizar delas.
Deixei meu pai e fui enfim até as margens do rio. Acocorei-me tal como ele, naquele gesto típico de mineiros, com as pernas abaixadas e a bunda quase no chão. Mirei e remirei e me deixei enfeixar, enfeitiçar pelo sempre novo brotar das infinitas e líquidas peles do Casca.
E aí foi quando pude sentir de verdade as palavras de González, sobre testemunhar o sempre novo brotar ou jorrar dos entes no mundo, aí foi quando pude me dar por pacificada, por testemunha das coisas e testemunha das minhas próprias nascentes, do meu próprio jorrar no mundo, sempre novo e sempre intérmino, e muitas e muitas vezes doloroso.
E somente então pude realizar aquilo que talvez mais se aproximasse ao tal ritual. Levei a mão direita até a margem do rio, enchi-a de águas e as devolvi. Fiz isso por umas bastantes vezes, umas cinco ou seis, sei-o lá, devolvia-as ao seio do rio. Por último, bebi da última leva de água que trazia com as minhas mãos em concha. Mas guardei na boca o suficiente para enchê-la, a língua nadando deliciada naquela lagoa íntima, misturei-as com a minha saliva e as devolvi suave e sensual ao Casca. Era como um beijo -mais do que molhado, reconheça-se - no rio; mas era principalmente uma mensagem ao Piranga para que, quando se encontrassem lá no Rio Doce, o Casca informasse que a celebração de minhas nascentes e o meu retorno ao mundo já estavam em pleno e plano andamento - como a incansável superfície de um rio.
Voltei, cumprida, não levada para o fundo, mas sim trazida à vida e lavada pelo Casca. Voltei, protegida pelo abraço do pai, os dois mirando o rio e o mundo ainda por instantes.
E, súbito, sem mais nem porque, eu me transformei novamente em puro choro. Era a primeira vez que chorava depois que tinha saído de Ponte Nova. Parecia-me que as lagrimas deslizavam tão rápidas como as águas do Casca. Eu não aguentei a lembrança dos momentos de pura tristeza à beira do Piranga, mesclada agora com a visão do Casca ali à minha frente. Tudo remetia à minha luta para me manter erguida, andante, fonte de fala e de escuta.
Ademais, a presença do pai. O seu abraço como se me dizendo, silenciosamente, para colocar para fora a tristeza que ele sabia que me corroía e que corria pelos meus todos dentros, tristeza que eu vinha disfarçando. Agora, eu sabia que não, que eu não conseguiria esquecer de fato daquilo que me esperava em Ponte Nova. Agora eu sentia que seria tomada, a qualquer momento, por aquela sensação de ameaça indefinida.
O pai deixou que eu chorasse o tempo que eu quisesse, em nada interferindo, em nenhum momento dando conselhos banais e inúteis. Apenas me abraçava. E é claro que me vieram à memória aquelas assustadoras e magnéticas palavras que eu ouvira o Piranga me dizer. Isso, se novamente me entristeceu e assustou, por outro lado me acordou, me fez resistir ao terno e traiçoeiro chamado das lágrimas. Tal como o Piranga me dissera.
Isso, claro, foi me acalmando aos poucos, lavando em definitivo os restos de tristeza lacrimejante que ainda resistiam em mim. E a presença do pai lavava-me, tal como a clara visão das águas do Casca à minha frente.
— É muita coisa pra gente cuidar neste mundo - pausou e suspirou: – É muita gente pra gente cuidar nesta vida...
Assim, do nada – o pai proferiu. O que num átimo praticamente me fechou a ferida, ou me secou a cascata lacrimejante. E, engraçado, das suas palavras me veio uma compreensão maior do drama que nos envolvia – eu, Lázaro e Juliana. Eu quase tudo quis perdoar ali, pois entendi que a ameaça e a dor não vinham deles, vinha da própria vida, que nos coloca frente a situações tão dolorosas e complexas.
Mas não, era mais complicado, não era o caso de perdoar, pois que o perdão de nada resolveria. O que resolvia era colocar fim à minha dor e tristeza, fosse do jeito que tivesse que ser. Estranho, muito estranho todo o nosso viver. Sim, mestre Rosa, além de perigoso, nosso viver é muito estranho – estranho e escorregadio. Como águas e rios. Escorregadia, a nossa travessia, né, Riobaldo? Um dos ícones de meu Lázaro, claro.
No que pai de novo proferiu, a me alegrar, mas sem pieguice ou tolice fácil:
— A gente se engana muito, mas a minha idéia me diz que esse seu moço não desgruda mais dessa terra, nem da sua pessoa.
Puro bálsamo, pura alegria, pura música a harmonizar com o deslizar das águas do Casca. Que em verdade tudo pouco durou. Mas ao menos me fez esperanças, me reergueu a alma um pouco mais. No que reergui o corpo - depois de lhe demorado abraço, ao pai.
Retornamos, subindo o barranco, ele atento ao algum perigoso escorregão de minhas pés e pernas.
*
Mas aí que um estalo. Não tinha terminado ainda não, o meu ritual naquela minha nascente. Pois que, na descida, não tinha dado para ver, mas ao subir, percebi claramente uma pequena cascata, aonde uma pessoa poderia se banhar tranquilamente.
Imediatamente, disse ao pai que subisse e que esperasse na estrada. E que também vigiasse, pois eu simplesmente decidira tomar um banho ma pequena e bastante escondida cascatinha do Casca. Meu pai, por óbvio estranhou e ficou até um pouco constrangido; afinal, ainda que lutando contra a sua consciência, teve que me imaginar, mesmo que por segundos, toda nuazinha ali debaixo da ponte e no meio das águas e dos matos, e tão próximo da estrada. Já principiava a tentar repelir minha decisão, quando eu apenas lhe dirigi um longo e firme olhar e lhe disse, convincente:
— Pai, se eu não fizer isto a cura vai demorar mais ainda... Às vezes não basta lavar apenas a alma, tem que lavar o corpo também...
Ele entendeu a seriedade da coisa e relaxou. Até fez uma brincadeira, para despistar ou descontrair, dizendo que eu estava querendo voltar aos nossos tempos de criança, quando ele nos trazia para nadar no Casca.
Subiu e foi matutar em cima da charrete. E eu, lépida e atrevida, mais que depressa tirei tudo, camiseta, sutiã, bermuda, calcinha e me esbaldei um bom tempo na friazinha cascatinha. Os olhos fechados, protegendo um pouco os cabelos, sentindo a água cair deslizar sobre mim, sentindo-a desejosa de mim, lavando e acariciando meu corpo, minhas cavidades, minhas curvas, meu sexo, meus secretos, tanto aquelas águas, que eu tocara e salivara há pouco, haviam lavado a minha alma.
Tanto quanto Lázaro me inundara e me lavara pela primeira vez meses atrás. E, agora, o havia dele dentro de mim, mim talvez, talvez fosse aquilo seria lavado em breve, com a ajuda das águas do Casca, certamente.
E, agora sim, eu tinha a mais absoluta certeza de que o Piranga saberia de meu redentor retorno às minhas nascentes. De alma e corpo. Pois certo que as águas do Casca fariam chegar-lhe os meus cheiros e suores e hormônios
FFoi belo, foi breve; foi túmido, telúrico e excitante, e aquático, claro. Uma solitária e excitante Epifania em minhas próprias Nascentes. Vortemo.
*
Na volta, a charrete pareceu-me ainda mais aconchegante, a manhã ainda mais borboleteante, até as pessoas, na sua dura labuta, mais remoçadas, mais... renascentes.
O pai cumprimentava a todos, quase todos conhecidos. Agora, que com menos pressa, a tarefa cumprida, parou, uma que outra vez, para discretamente exibir, aos mais conhecidos e que mais se lembravam de mim, a filha agora professora e pensionista do governo.
Parecia que o meu atrevido e mágico banho não apenas lavara-me, mas lavara o mundo e as gentes para os meus olhos e o meu coração. Tudo e todos estavam apaixonantes, aproximantes, amigantes.
(Grata, Lázaro, por ter me ensinado e me dado coragem para inventar ou mudar palavras e frases. No fundo, sei que, de um jeito ou de outro, com ou sem epifanias eróticas, entre nós dois também será pra sempre coração no coração, como você disse umas dez mil vezes para a sua Ju-Juju-Juliana, lá no Passa-Ouro; que bom, só por eu pensar em Lázaro, pela primeira vez com gratidão, e não apenas com amargura e desamparo, eu sentia que o pior começava a passar; lavada nas minhas nascentes e em uma epifania).
Sentia que a presença do pai enriquecia a magia da minha manhã de mulher renascida. Nunca, desde minha adolescência, ele olhara com receio ou rancor as minhas estranhezas e esquisitices. Ao contrário da mãe e de minhas irmãs e irmãos. Deveria ser o contrário, pois não? Nesses casos, a mãe e as irmãs é que são mais intuitivas, ou compreensivas. Mas não foi o caso, incrível que pareça. Não que não tenham sido amigas, companheiras, confidentes, conselheiras, principalmente com relação à estranha história com Mílton e ao casamento com Gilberto.
Mas com o pai sempre fora diferente. Com sua figura alta, magra, seca, embora meio pensativa, vivia disparando ordens, estava em constante atividade. Mas reservava para mim um olhar diferente, mais demorado e com algum cuidado, como se dissesse que estaria sempre por perto de mim, acontecesse o que acontecesse, fizesse o que eu fizesse de meu destino; como se adivinhasse que eu sempre precisaria mais de sua proteção, uma proteção que a mãe nem as irmãs e irmãos saberiam ofertar, por mais que o tentassem.
E, para fechar o passeio de charrete pela manhã, não há como não abrir novamente um espaço para aquele poema de U., que me mostrado por Lázaro, e que mencionei quando de meu reencontro com Milton em BH; embora não houvesse nem uma ponta de saudade dele, apenas a lembrança da magia daquela manhã, na Afonso Pena:
o aberto e dourado abraço da manhã carrega um sorriso anil de felicidade, que se estende quilometricamente. borboletas edificam casas bonitas como crianças. um coração ainda não esquecido das primeiras fomes se alimenta nestas veias feitas de mansidão.
E falar em U., lembrei-me também, é claro, de Lázaro. Mas lembrei-me apenas para constatar o quão ele e sua adolescente estavam por demais longe de mim e de meu refúgio na Capivara.
Apesar disso, eu não me iludia, sabia que era apenas refúgio. Que a angustiante realidade da decisão de Lázaro, entre mim e Juliana, me esperava lá em Ponte Nova, em pouco mais de uma semana. Apesar de lavada pelo Casca, de alma e corpo.
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AVISOS
Todos os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção, não se referindo, de forma alguma, a pessoas ou fatos concretos. Qualquer semelhança ou coincidência terá sido mera ficção.
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