
O u r o P r e t o
Passa-Ouro
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ÍNDICE
01 - saída do cortejo. 4
02 - na estrada do Real, as entradas do fatal 9
03 - chegada do cortejo. 15
04 - ouro, nascedouro de amores. 23
05 - ouros de ouro. 32
06 - ouro, crescedouro de amores. 37
07 - epifania e eros, nas alturas e névoas de ouro. 48
08 - doença - a revanche, mpo - os avanços. 61
09 - viçosa, rios, manoelzão, canastra, juiz de fora. 67
10 - no mesmo banco, na mesma praça. 80
11 - crepúsculo de um lazarento. 84
12 - o triângulo e o surto. 102
13 - madrunoite – a dentro ouro preto. 118
14 - a perplexidade e a coragem do Cruciasfixiado. 125
15 - a Dor maior, e uma incerta vitória do Cruciasfixiado. 153
16 - prossequências. 160
17 - aurora - renasce-se assim fácil, fácil?. 201
01 - saída do cortejo
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Mas no que acordei do cochilo, já fi-lo de forma inquieta, novamente com acelerados pensamentos e reflexões. Na verdade, pouco cochilara. Estava com singulares disposições, eram variadas as expectativas. Preocupava-me, em primeiro, com um pretexto, ou artimanha, para viajar junto com as três irmãs, no carro de Priscila. Afinal, iríamos apenas nós, já que mais de quatro pessoas num carro seria desconfortável, em viagem tão longa e, quiçá, com alguns imprevistos, em razão de sua singularidade. Precisava recorrer às irmãs para que tudo desse certo, elas encontrariam as palavras e argumentos necessários junto aos pais. E, aí seria uma festa, dentro dos limites do luto, claro.
​ Mas havia outros assuntos de ordem prática. Por exemplo, qual o roteiro para o cortejo fúnebre, as cidades por onde passaríamos até chegar a Ouro Preto. Outro assunto foi a impossibilidade de visitarmos as outras cidades, que González tinha em mente nos fazer conhecer: São Lourenço, Caxambu, Cristina, entre outras – e, claro, São Thomé das Letras, a cidade de U..
​ Na verdade, combinaríamos com U. que nos esperasse em São Thomé, quando lá fôssemos, depois de Passa Quatro, e de lá ele iria conosco para Viçosa. Mas era preciso telefonar-lhe, urgente, comunicando as infelizes mudanças. Agora, talvez ele até viesse ao nosso encontro, durante o cortejo; conhecera Augusto antes mesmo de nos conhecer na Filosofia. Se não viesse, com certeza estaria em Ouro Preto, quando lá chegássemos.
​ Quanto às cidades que não poderíamos mais conhecer, fizemos vagos planos de retornar em época propícia. E com mais pessoas, claro. Lembrei que não deixaríamos de fora uma tranquila e demorada visita ao sítio de Fábio. Foi só dizer isso e González pôs-se a arquitetar planos, ampliando bastante, e de forma inusitada, o nosso futuro retorno ao Sul de Minas. Colocou em pauta a possibilidade de também participarmos da peregrinação que a família Rezende realizava, ano sim, ano não, até Aparecida do Norte, por ocasião do 12 de outubro, dia da Festa da Padroeira.
Além dos Rezende, iam vizinhos e conhecidos diversos. Era uma tradição já consolidada em Itamonte, Itanhandu e Passa-Quatro. Até Ermelinda e as minhas Três Graças participavam. Havia apenas um problema. Não peregrinavam nem de carro nem a pé. Iam a cavalo. Isso praticamente nos excluía da aventura. Eu sequer conseguia imaginar Ilídio, U., Olavo, eu próprio e outros companheiros cavalgando, ainda mais por razoáveis distâncias. Cavalos não eram a nossa praia. As nossas praias eram as palavras, as bebidas, as paisagens, e as eróticas vivências, digamos assim. Nem as praias eram nossa praia.
​ González entendeu o problema, e ficou de tentar encontrar uma solução; por exemplo, Fábio ou Nicanor a nos levar nos seus carros. A questão era que a maior parte da rota era feita através de pastos trilhas, estradinhas, nas quais um carro não transitava. Sério problema. Pois eu também sequer imaginava a possibilidade de ficarmos de fora de acontecimento para mim tão singular. Uma numerosa cavalgada através das colinas, pastos, montanhas e estradas da Mantiqueira, com todo aquele interessante povaréu. Havia que se ver singulares coisas, paisagens, conversas, situações. Preparo de comidas, um que outro churrasco em plenas colinas mantiqueiras, cantorias populares e religiosas a valer, sérias conversas sobre religião, políticas, putarias (essas últimas longe das mulheres, por óbvio, e não tão sérias, também por óbvio), terras de conhecidos por onde passaríamos. E sem contrariar, claro, meus bucólicos, mantiqueiros e eróticos encontros com as três irmãs, minhas três namoradas.
​ Sim, uma festa, uma festa aquela cavalgada; tinha tudo para se tornar, além de uma peregrinação, uma verdadeira Epifania. No momento em que toquei nisso de Epifania, González decidiu-se abrir mais ainda comigo, acerca de seu obscuro caso com Lívia. Após pedir-me novamente extrema confidência, disse que, se a ocasião surgisse durante a futura cavalgada, talvez os dois decidissem realmente tornar o que era apenas atração em consumada relação íntima. E talvez precisasse de minha ajuda, para eventuais disfarces e proteções.
Explicou que, até então, durante os anos em que morara em Passa Quatro, e mesmo depois que fora para Viçosa, ele e Lívia haviam mantido uma distância respeitosa e precavida. Eu já tinha consumada certeza de que era deslavada mentira a tal distância respeitosa, mas entendi que era a sua forma de se abrir aos poucos comigo, mesmo antes de chegar a Viçosa. Respeitei, entrei no jogo. Mas, maliciosamente matutando novamente: Adriana, filha de?
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Outra intenção minha era a de interferir no roteiro do cortejo fúnebre até Ouro Preto. Reconhecia, sem hipocrisia, que era mais uma preocupação de caráter literário. Queria tentar fazer daquele cortejo um acontecimento singular, algo diferente, que ficasse na memória dos moradores das cidades pelas quais passássemos. Queria enredo, emoção, intensidade, enfim, fazer do suicídio de Augusto uma verdadeira literatura, a ser escrita no futuro.
​ Imaginei que meu literário conterrâneo certamente me agradeceria por isso. As histórias e enredos e personagens, que construiríamos, seriam agora substituídas por uma só, pela minha narrativa de sua vida, de sua venenosa vivência com Marina, de seu seu suicídio e, agora, de seu singular cortejo fúnebre e subsequente velório. Não deixava de ser uma honesta e autêntica homenagem ao meu conterrâneo, ex-futuro amigo e ex-companheiro de palavras e de Revolução. Já não me pareceu tão oportunista ou calculista o meu interesse em interferir no roteiro do cortejo até Ouro Preto.
​ E a última emoção a me inquietar, e a me colocar para fazer e dizer coisas, era exatamente a recorrente melancolia pela perda de Augusto. Registre-se: não apenas a trágica perda da pessoa, mas a perda de tudo aquilo que poderíamos fazer juntos, a perda de um companheiro que eu sabia que me seria de grande valia em minhas labutas com as palavras. Então, era toda essa contraditória mistura de emoções, desejos e reflexões que me fizeram renunciar ao descanso e sair do quarto bem antes do espanhol. Erotismo, desejo e sincera alegria pela companhia das três irmãs, melancolia por Augusto, triste saudade daquilo que já não mais haveria, ímpetos de forjar uma narrativa e um roteiro para o cortejo e para Augusto. Sim, situação complexa, como quase tudo, aliás, em que eu me envolvia.
​ E foi isso que me levou direto do quarto para a cozinha, entrando logo no assunto do roteiro das cidades, principalmente com Aloísio e Fábio, que poderiam sugerir o melhor caminho durante a parte inicial da viagem, já que bem conheciam a região. E também teriam a necessária influência junto a Altamiro, a Tonico e a outros líderes da comitiva. Aloísio não se fez de rogado e foi logo buscar um mapa. O almoço estava praticamente pronto. Aguardaríamos apenas González acordar. Enquanto isso, debruçamo-nos todos na mesa, a esquadrinhar o mapa daquela parte das Minas Gerais. E ponto. Não foi difícil chegarmos a consensos.
​ Na realidade, não havia tantas opções quanto as que eu pensava, eu não conhecia bem a geografia daquelas regiões. Pelo menos, não havia a opção que eu gostaria, qual seja, um roteiro que passasse por nossa região – Ubá, Viçosa, Ponte Nova, e que incluísse talvez até mesmo Rio Pomba, a cidade de Eliza, a fugitiva jovem que era o par da melancólica história amorosa de Ilídio. Se fôssemos passar por Rio Pomba, eu convenceria Ilídio, e sua doce irmã Marcelina, a nos esperar por lá, somente para lhes dar o gosto de visitar a cidade natal de sua Eliza – Eliza era funcionária concursada do INSS. No Não ia te dizer, Helena esmiúça o atormentado caso dos dois.
Claro, poderíamos escolher o roteiro que quiséssemos, mas não seria racional eu insistir nisso. Havia muitos perigos e imprevistos envolvidos numa empreitada daquelas. O coerente mesmo eram duas rotas: ir por São Lourenço, Caxambu, Aiuruoca, Bom Jardim, Lima Duarte (terra do Ibitipoca), Juiz de Fora, Carandaí, Conselheiro Lafaiete e, finalmente, Ouro Preto, com várias cidades menores e povoados entre uma cidade e outra.
​ A outra rota seria, a partir de Caxambu, seguir por Cruzília, São João Del-Rey, Tiradentes, Congonhas e, por fim, Ouro Preto. Todos acharam essa rota mais conveniente, pelo fato de ser mais curta e menos movimentada. Eu também, mas em razão de haver mais cidades pequenas ao longo do trajeto, com nomes até que poéticos: Mindari, Madre de Deus de Minas, Entre Rios de Minas. Eu queria observar o efeito do longo cortejo principalmente em cidades pequenas, com costumes e tradições ainda arraigados, nessas questões de mortes, velórios e enterros. Seriam singulares momentos, sentir a comunhão, a reverência dos moradores dessas cidades com aquele que morrera e com seus parentes e amigos tão numerosos. Eu já me dera por satisfeito, não queria interferir em mais nada que dissesse respeito ao cortejo, doravante apenas observaria e registraria.
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20 - na estrada do Real, as entradas do fatal
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E assim se deu, já na segunda-feira cedinho. Quase tudo como imaginei, mas com as não pequenas e sempre surpreendentes variações. Deveria dizer do meu lugar, articulado e garantido pelas três irmãs, no carro de Priscila. Mas melhor deixar os amorosos detalhes para o final. Primeiro, por respeito, falar do cortejo do suicida Augusto.
​ Assim, falar do fluir, daquele silencioso e sério desfile de veículos a adentrar repentinamente pelas cidades, com um carro funerário à frente e, logo atrás, o padre Joel, devidamente batinado e batizando, com sua silenciosa transcendência, todo o cortejo fúnebre. Ia numa picape e, quando entrávamos em povoações ou cidades, subia para a carroceria e mantinha-se ereto durante toda a travessia do lugar – negra batina, hirta e densa figura, transcendente presença. Aquilo impressionava, o carro fúnebre, o caixão em cima do bagageiro e a espessa presença do padre na camionete.
​ E a então recepção das pessoas, nas cidades em que passávamos, parecendo sempre a mesma e sempre diferente, mas também sempre deferente. Como previa, a reação mais intensa e comovida era sempre nas pequenas cidades. Chegavam a fechar portas dos comércios, quando percebiam do que se tratava, e se notava respeitosos silêncios advindos dos moradores. Alguns chegavam mesmo a se persignar. Em verdade, nas cidades mais próximas já até sabiam do que e de quem se tratava.
​ Afinal,tquase todo mundo tem um parente numa cidade vizinha, e com o pessoal de Itamonte, Itanhandu e Passa-Quatro não seria diferente. Portanto, haviam sido feitas comunicações ao longo do do trajeto, no domingo e na segunda, avisando sobre o cortejo. E, assim, além das reverências e cuidados para com o falecido, aconteceram até mesmo adesões de moradores de outras cidades, pessoas que haviam convivido com Augusto, ou que apenas se dispuseram a acompanhar parentes ou conhecidos; ou simplesmente para participar do cortejo fúnebre, em razão de devoção ou solidariedade.
Enfim, a coisa começava a se se confirmar como verdadeira Epifania. Era como uma reverência que as pessoas faziam ao Sagrado, ao Mistério, que se manifestava até mesmo no morrer de alguém, ainda mais alguém desamparado e suicidado por amor frustrado, doído, num límpido riachinho de montanha. Não resisti e, na parada para almoço, quis ouvir González acerca de minhas impressões. Ele concordou plenamente, e arrematou:
​ — Você sabe, às vezes as pessoas são mais argutas e intuitivas do que muitos artistas, intelectuais e até mesmo filósofos... Você sabe...
Tínhamos planejado almoçar próximo a São João Del-Rey, a cerca de duzentos e tantos quilômetros de Passa-Quatro, mas acabamos fazendo as refeições bem antes; quando deu meio dia, ainda estávamos próximos a Madre de Deus de Minas, uns sessenta quilômetros antes de São João. Houvera não poucos atrasos e imprevistos, como seria de se esperar em acontecimento tão singular. Por ali decidimos parar. Mesmo porque o nome da cidade combinava com o extraordinário acontecimento, ou com a última refeição do falecido.
​ Não é preciso dizer que quase todos os moradores, da simpática cidadezinha, acorreram aos restaurantes aonde fomos almoçar, para saber notícias e prestar condolências. Digo restaurantes, pois é claro que somente um estabelecimento não daria conta de servir a todos, já éramos bem uns cinquenta carros, sem contar aqueles moradores da cidadezinha que, doravante, passariam a nos acompanhar. Claro, teriam que se preparar, resolver pendências de última hora, e somente depois de quilômetros é que se juntariam a nós.
​ E assim prosseguimos, rodando pelas Minas afora. Já se fazia tarde. Era preciso acelerar para minha cidade, minha e de Augusto, esquecia-me. Mas, por outro lado, eu manobrava para não passarmos com demasiada pressa por povoados e pequenas cidades. Aquela simbiose das pessoas conosco me atraía, me fazia pensar em um acontecimento único, que talvez eu nunca mais presenciasse em meu breve estar-no-mundo – aliás, nosso breve estar-no-mundo. Augusto que o dissesse, se pudesse - um autêntico escritor perde desrespeita uma póstuma amizade, mas não perde uma boa tirada literária.
​ Eu tinha esse poder de manobrar o ritmo da viagem, pois dera um jeito de fazer o carro de Priscila ficar bem atrás do carro funerário, na verdade atrás da camionete do Padre Joel. Aliás, eu nem precisara insistir muito nisso, afinal havia a história não vivida entre ela e Augusto, que a impelia naturalmente para o começo do cortejo, como uma espécie de demorada e amorosa despedida de Augusto; ou como guardiã ou companheira de sua jornada final pelas Minas.
​ Então, eu me admirava, me espantava e louvava o espanto daqueles que nos viam atravessar a sua cidade, assim, assim, de um momento para outro, conduzindo um falecido. E imaginávamos as respeitosas perguntas, comentários, respostas de uns e de outros. Era realmente momento diferente. Devo dizer que as três irmãs não me decepcionaram, entraram no espírito da coisa, perceberam a grandiosidade e singularidade do momento, apesar de um ou outro carinho ou momento erótico, com ora uma ora outra das Três Graças.
​ Aquelas parcas palavras de González clarearam em mim uma certa compreensão, que vinha já se insinuando desde as primeiras cidades e povoações. Toda aquela postura de acolhimento e reverência, de parte das pessoas, representava uma espécie de resistência popular e transcendente. Uma resistência da vida interiorana contra os avanços acelerados, alucinados e, às vezes, estúpidos da modernidade e da Besta da Técnica. O cortejo do suicida servindo como instrumento, ou oportunidade, para que valores e posturas adormecidos pudessem se manifestar, nos silêncios, olhares e persignações das pessoas com quem cruzávamos.
​ Aquela resistência era como um grito silencioso, um grito de quem não queria perder o que ainda havia de transcendência no seu mundo, de quem não queria perder o seu mundo, de quem não queria se perder, frente ao avanço de algo meio desumano, que eles pressentiam que os envolveriam e deformariam, qual seja, a maldita Besta da Técnica.
​ Na verdade, penso que todos os membros da fúnebre comitiva percebiam essa singularidade nos momentos que vivenciavam. Era de fato como uma simbiose. Os moradores reverenciavam e cuidavam do cortejo e nós, de nossa parte, registrávamos, reverenciávamos a sua reverência e o seu cuidado para conosco. Tudo por tudo, a Epifania crescia a cada cidade atravessada por nós, agora mesmo nas cidades um pouco maiores já havia uma certa atenção ou respeito; afinal, a notícia devia estar correndo de boca em boca, ou melhor, através de telefone em telefone.
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E eis que houve súbita mudança de roteiro. Iniciativa de Altamiro. Lembrou-se de que havia um padre em Prados, logo depois de São João Del-Rey, o qual fora grande amigo de Augusto – nosso amigo também tinha passado uns anos no Seminário Menor de Mariana, tal como eu, e lá tinham feito forte amizade. Altamiro lhe telefonara e o padre Pio concordara, na verdade solicitara que o cortejo se desviasse um pouco de sua rota e fosse até Prados, para um breve ritual, uma espécie de extrema-unção tardia. Ademais ele e padre Joel eram também conhecidos, embora tivessem estudado em seminários diferentes. Padre Joel reforçou as intenções de Altamiro.
​ Argumentavam que seria, senão necessário, ao menos uma questão de consideração à amizade dos dois, que esse padre tomasse contato com o corpo do amigo suicida e do cortejo; e afinal o atraso não seria tão grande, cerca de trinta quilômetros entre ida e volta. Admirei e apoiei a iniciativa de Altamiro. Por demais interessante, aquela parada inesperada, logo na simpática, bucólica e histórica Prados – eu, Ilídio e U. tínhamos visitado a pequena cidade, quando vivíamos em Juiz de Fora. Tudo o que era cidade histórica, ou diferente, nos dizia respeito.
​ Pena que de fato foi breve o ritual, ou encontro, com o Padre Pio e com a contrita população de Prados. Mas,para nossa agradável surpresa, o próprio padre decidiu seguir conosco até Ouro Preto, ele e mais alguns conhecidos ou devotos auxiliares de sua paróquia. Crescia a Epifania, agora tínhamos até mesmo dois sacerdotes a sacramentar o cortejo e a simbiose, logo depois do carro fúnebre.
O Sagrado, quando contente, sabia fazer as coisas a contento. E cantantes, claro, pois o que havia de cânticos e orações durante as paradas não era brincadeira; era séria e consagrada sinfonia das almas vívidas para a alma do suicida.
​ Na partida, aliás, me lembrei de que, outrora, eu, U. e Ilídio tivéramos forte vontade de conhecer um local chamado Dores de Campos, não sei se cidade ou distrito de Prados. Claro que o que nos atraía era o nome do lugar. E, às vezes, atrás de um nome simpático ou diferente, esconde-se também um lugar que encanta. Mas, tal como outrora, não seria agora que eu poderia conhecer o local. Mas comentei com Priscila e as irmãs, e ficamos de lá ir um dia e, claro, aproveitando para passar um ou dois dias na bucólica Prados.
​ No mais, avançávamos já com mais rapidez e fluidez rumo a Ouro Preto. Afinal, as horas passavam, as pessoas aguardavam a singular chegada do cortejo e, mesmo porque, não fazia calor, dirigia-se com mais vontade e tranquilidade. Renuncio a contar mais detalhes e acontecimentos havidos ao longo do cortejo. Afinal, este outro cortejo, o cortejo das palavras deste livro, escapou ao meu controle, tornou-se por demais extenso. Aquilo que deveria caber em uma centena e pouca de páginas adquiriu vontade própria, como às vezes sói acontecer, por imposição da Voz. Se bem que muito do crescimento deste cortejo de palavras deve-se ao próprio González que, pouco a pouco, foi trazendo para a história elementos, personagens e situações que nada tinham a ver com uma mera e singela narrativa de férias e aprazível descanso na Mantiqueira. Inclusive as suas falas no denso, pesado e quase interminável Interregno.
​ Mas acerca do suicídio de Augusto, que tudo mudou, ele não teve culpa, claro, nem poder ou oportunidade de intervenção. Interessante constatação: a história e o suicídio de Augusto foram o que mais invadiram e envenenaram a nossa fracassada historinha de férias, e, agora o seu longo cortejo fúnebre invadindo e, ao mesmo tempo, enriquecendo este longo cortejo de palavras. Admiráveis ambiguidades. Coisas da vida. Ou coisas da Voz. Cheguei a comentar também isso com as três irmãs, elas entenderam e acharam interessante, mas de forma respeitosa, quase silenciosa. Não podia esperar menos delas.
Mas voltarei a isso ao final, isso de as inocentes e depois amorosas férias mantiqueiras terem sido invadidas pelas agruras da dura realidade, e não apenas pelas agruras e amarguras de Augusto, diga-se.
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21 - chegada do cortejo
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Ouro Preto. Ou simplesmente Ouro, para mim. Ah, saudades e quase remorsos, havia já um bom tempo que eu não lhe reverenciava. E era sempre como se fosse a primeira vez. O austero e ancestral brilho de seu colorido casario. Suas ladeiras e ruas íngremes como se a pagar penitências ou, ao inverso, a brincar de esconde-esconde umas com as outras. As montanhas a proteger a cidade, como se o próprio Ser se preocupasse com a fragilidade daquele ente dourado, que o Mistério permitira que os homens – sem esquecer a dor dos escravos e pobres, claro – construíssem. Das Igrejas, não precisaria falar. Apenas diria aqui que eram os circunspectos marcos, os pontos de referência, através dos quais o Sagrado constantemente se manifestava — por toda a cidade, e não apenas nas Igrejas, claro.
​ Se eu, que dali era cria, espantava-me e admirava-me com minha Ouro, toda vez que a reencontrava, imagine-se o espanto do resto da comitiva, e principalmente imagine-se o espanto das três irmãs que, embasbacadas, olhavam para tudo, a torto e a direito, para frente, para trás. A pobre Priscila é que não podia admirar tudo, já que lhe cabia dirigir o carro. Mas eu lhe compensaria com passeios somente a dois.
​ Chegamos ao quase escurecer. Alguns familiares de Augusto, o pai à frente, aguardavam, há já bom tempo, na Praça Tiradentes, centro da cidade. Sua família morava para os lados do bairro Cabeças. Minha família morava próximo à Praça, numa rua lateral, felizmente meio que escondida, descendo à esquerda de quem ia para o Museu da Inconfidência.
​ E, para nossa alegre surpresa, lá estavam nossos amigos: U., Ilídio, sua doce irmã Marcelina e até mesmo Bartolomeu, o pai de Ilídio. Aproveitara viagem que tinha de fazer a BH, em seu caminhão, para trazer os filhos, e também para fazer uma visita a meu pai. Eu e Ilídio os apresentáramos, anos atrás. Juvenal, um de seus motoristas, que sempre o acompanhava, quando Bartolomeu queria matar saudades da estrada, viera deitado na carroceria, ainda vazia.
​ Mas, lá na Praça, os instantes eram problemáticos. Primeiro, pela comoção da entrega do corpo do suicidado aos seus familiares, após longa e incerta espera. E, depois, pela questão da acomodação daquele não pequeno cortejo fúnebre. Claro, minha família, a de Augusto e alguns conhecidos já tinham corrido hotéis e hospedarias e reservado vagas para todos, de acordo com as posses de cada um. A aglomeração na Praça Tiradentes aumentava aos poucos. Como motorista de táxi, o pai de Augusto era suficientemente conhecido, tanto quanto o meu, seu Domingos, funcionário da Prefeitura no setor de turismo, juntamente com minha mãe.
​ Tanta e gradual concentração acabou por gerar inusitado fenômeno. Depois da contrição de muitos e algumas lágrimas de familiares – claro, a mãe de Augusto não estava presente, forças lhe faltariam – depois dos cumprimentos discretos e solenes entre viajantes e moradores, o que se formou foi simplesmente um outro cortejo fúnebre, rumo à casa dos pais de Augusto; só que agora com uma mistura de carros e pessoas caminhando, atrás ou entre os veículos.
​ Eu não atinava se era uma repetição do cortejo pelas estradas e cidades por onde passáramos, ou se se era simplesmente uma espécie de antecipação do cortejo fúnebre final. Comentei, claro, o tema com González, e ele achou deveras interessante o paralelo por mim feito. Já as três irmãs não acharam tão reverente, todas acharam desinteressante, cansativo e até meio caótico e desrespeitoso.
​ Mas: pão ou pães, questão de opiniães – olhai, olhaí, óia pr'ocê vê, Riobaldo, Rosa e Minas de novo, em honrosa menção; desta feita a Voz não me fez outra desfeita, levou a sério as minhas queixas lá de trás, ainda em Passa Quatro. A Voz, além de misteriosa, soberana e onipotente, também sabe ser sensível e generosa.
​ Por falar em Passa Quatro, eu já sentia saudades, misturadas com a alegria do retorno à minha Ouro Preto. E quanto ao leve azedume das três irmãs, havia que se levar em conta que elas estavam mui cansadas, estavam em terra estranha e ainda sentiam a partida trágica de Augusto, muito mais do que eu, claro.
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Sigamos.
Na verdade, paremos. Pois, por fim, pus fim a tarefas e atividades e reflexões, dei-me o direito de me cansar e de querer repouso, inatividade e talvez até sono. Muitas, muitas vivências desde Dentópolis, passando pelas cidades do Sul de Minas e fechando com o cortejo de Augusto. Isso, claro, aliado ao fato de estar de retorno à minha terra, após considerável tempo. Foi o que me levou a chamar as três irmãs para a minha casa. Os pais delas já tinham se misturado à multidão; faziam questão de participar daquela comovente e condoída entrega do corpo à mãe de Augusto, verdadeira procissão e profissão de fé e de solidariedade de ouropretanos e visitantes.
​ Fomos, melhor descemos, à esquerda da Praça; guiei Priscila até a minha rua, que ficava bem próxima à Igreja de São Francisco de Assis. Sem precisar dizer o quão intensa a surpresa da família, ao assim chegar, de inopino e acompanhado de trio feminil tão charmoso. Claro, minha mãe e minhas duas irmãs já tinham ouvido falar de nossa chegada, melhor dizendo, quase toda a cidade. Meus dois irmãos tinham ido com meu Domingos pai para a Praça.
​ A mãe percebeu logo o meu cansaço, que era coisa rara. E, com seu instinto e astúcia maternais, detectou em mim algo fora do comum. E eu não fazia por esconder nada dela, nem das três irmãs. Confessei que vinha sendo tomado por uma insistente sonolência, desde Ouro Branco; aliás, as três irmãs haviam percebido que eu cochilava e cabeceava no carro, vez por outra. E também que eu me tornara menos falante e já não mais as procurava para as carícias e os carinhos, que trocávamos praticamente desde Passa Quatro. Em verdade, houvera mesmo instantes em que eu pedira para dormir no colo ora de Juliana, ora de Lena, dependendo de quem estivesse no banco de trás. Mas sem confessar ou admitir, ou sequer pensar, em algum mal-estar mais sério.
​ Ainda mais na praça de Ouro Preto, em plena efervescência e contrição da chegada. Eu sequer admitia a possibilidade de não testemunhar aqueles instantes, mesmo porque nosso grupo fora reforçado com a presença de Ilídio, Marcelina e U., também com a sempre diligente presença de Bartolomeu. Mas, depois, em presença de minha mãe, era como se pudesse entregar os pontos. Alertado pela sua preocupação, aceitei que algo mais sério poderia estar se passando comigo. Priscila e minha mãe concordaram em que parecia uma espécie de virose ou gripe, bastante forte. Os sintomas apontavam para isso. Insistiram e convenceram-me a tomar um banho, ainda que rápido, e fosse descansar. O que fiz. Mas não descansei. Verdadeiramente quase apaguei. O apagão somente não foi completo porque entremeado de tremores e febres.
​ Nunca passara por uma noite de febres e calafrios e delírios em minha vida, afinal ainda jovem, menos de trinta. Na verdade, não foram delírios no sentido estrito da palavra, não eram sequer visões estranhas, inexplicadas e cheias de enigmas. Enfim, não foram tão espetaculares, ou extraordinárias, como sempre as imaginara noutras pessoas bastante doentes. Mas foi interessante, diferente – até onde me lembro, claro. Era tomado de pensamentos, sensações e reflexões que vinham, se consolidavam, mas logo se desconectavam umas das outras de forma fugaz, atropelada – delirante, a palavra.
​ E havia sempre o desejo, embora misturado com um certo medo, de que tais sensações ou pensamentos voltassem; um pouco para se explicarem, um pouco para me protegerem. Sim, protegerem, pois apesar dos indícios de medos e sustos, havia uma curiosa impressão de estar aninhado num mundo diferente. Como se o próprio fato de um doente já estar desamparado e fragilizado lhe fizesse merecedor de proteção e acolhimento, da parte de poderes estranhos, obscuros. Era, sim, algo aconchegante, um aconchego que era forjado, ou alimentado pela própria fragilidade. A doença vem, ataca, se instala e o doente, como não morre, como ainda se percebe vivo, sente-se então protegido, com promessas de retorno a um pleno viver.
​ O interessante era que a sensação de proteção e acolhimento vinha da própria doença, das próprias e obscuras potências, que quereriam ao mesmo tempo minar e ninar a sua presa. E também me lembrava, mas confusamente, um pouco as palavras de Dala, ao fim de sua cósmica e erótica epopeia em companhia de U., quando ela faz referência à sensação que a criança tem ao conhecer o vômito, a doença, o desarranjo do corpo e da vida pela primeira vez.
​ Deve haver, sim, uma imensa e inútil vontade de voltar ao útero nesse estranho e hostil momento do nascimento. Mas nascer é doer, e superar o adoecer é renascer? Bela charada, pois não, pois sim? Era por delírios parecidos que eu passava, principalmente quando via minha mãe e minhas irmãs por perto.
​ Aninhado, ninar. Palavras que tinham a ver com minha mãe, minhas irmãs e as Três Graças; elas somente se afastaram por algumas ocasiões. Elas se revezavam nos cuidados comigo, nos afazeres da casa e nos momentos do velório e do enterro. Eu não me lembro, mas parece que recebi todas as visitas a que tinha direito, tanto de Olavo e González quanto do pessoal de Passa Quatro – Ermelinda, Altamiro e Lívia com mais frequência. Claro que Marcelina, U. e Ilídio passaram um bom tempo por lá, embora esses dois últimos arredios a ajuntamentos sociais, mesmo em se tratando de doenças, tanto quanto eu e Olavo, na verdade.
​ No quarto, havia duas camas. As três irmãs e a minha mãe se revezavam em vigília, na outra. Quando minha doce mãe a custo saía para dormir, lembro-me de demorados e doces beijos de Priscila, de Lena tirando a blusa e aquecendo-me com o calor de seus seios e de seus braços e lembro-me de Juliana, que quase não me beijava, apenas me abraçava e chorava, chorava muito e baixinho. Mesmo assim, pareceu-me que as pessoas ouviam, e tinham que tirá-la do quarto, para acalmá-la. Até onde tudo isso era delírio eu não posso precisar, assim como não saberia dizer qual era a intensidade e a duração desses momentos supostamente eróticos ou carinhosos. Era tudo uma mistura de tremores, frios, febres, beijos, carícias, palavras, sonhos, suores, medos, alívios.
​ Houve até mesmo algumas fervorosas orações de minha mãe e algumas vizinhas – claro, ouropretanas e mineiras, já se viu que – acompanhadas por vezes pelas mantiqueiras vozes de Ermelinda, Lívia, Adriana e as três irmãs. Como frisei, nessas ocasiões a gente nunca pode saber o que é realidade ou delírio, imaginação. Mas, depois, fui apurando aos poucos o que de fato acontecera. E foi bom, e foi redentor, e foi reverente a minha primeira passagem pela doença na vida. Não teve como não me lembrar, agora sim com lucidez, daquela passagem em que Dala fala a U., quando ele retorna de sua cósmica e insana viagem:
​“imaginas também, ou relembras, algo como o primeiro mal-estar da criança ainda sem voz, o primeiro contato com o vômito, infantil e inexplicavelmente presente, o bebê sentindo, mesmo que por poucos segundos, que o primeiro desarranjo do organismo é causado por uma força poderosa, dissoluta, que, quanto mais tocada ou percebida, mais se agiganta e desampara.”
No meu delírio, até parecia que os próprios U. e Ilídio, que tinham redigidos juntos o Dala, me recitavam essa passagem. Assim passei a noite inteira e o dia seguinte, até lá pelas seis horas. Como se a coisa tivesse que durar quase que exatamente vinte quatro horas, quase que um exato dia de repouso numa atribulada e pretensiosa existência. Com isso, é óbvio que não pude participar do velório e do enterro de Augusto, o que me deixou ainda mais desgastado, aborrecido. Mas soube da atmosfera e dos detalhes, principalmente através de González.
*
Quando voltaram a me visitar, já na convalescença, todos, sem exceção, lastimaram muito a minha condição, como se Augusto houvesse se entristecido com a ausência daquele que certamente registraria, com a devida reverência, a despedida final.
​ Fábio, por ligado a místicas – como todo bom maconheiro, dos velhos tempos dos setenta – aventou a possibilidade de que a minha doença era uma questão de aura, ou de energias, não entendi bem; quer dizer, como se a minha aura não quisesse se despedir em definitivo da aura de Augusto, a minha aura ainda andaria perturbada com o seu suicídio. Tanto que eu ainda estaria confundindo as coisas, achando que o enterro do corpo de Augusto seria novamente a partida de sua aura, partida que, na verdade, acontecera no momento do suicídio, no momento do mergulho de sua aura nas águas.
​ Estavam ele, González, Olavo, Priscila e Lívia, no momento em que expôs seriamente a sua, digamos, hipótese. González não se manifestou, mas Priscila e Lívia demonstraram, com olhares respeitosos, simpatia para com suas palavras. Ambas eram bastante ligadas ao espiritismo ou kardecismo, portanto também um tanto ou quanto místicas; afora é claro, o carinho que tinham para com Fábio.
Quanto a Olavo, fosse outra pessoa a dizer aquelas palavras, ele certamente explodiria de rir na cara do sujeito, mas tinha verdadeiramente simpatizado com Fábio; manteve-se portanto, impassível tanto quanto González, embora houvesse me lançado um firme olhar de zombaria, a informar que continha, a custo, a sua gargalhante explosão.
​ Eu me constrangi um pouco com tudo aquilo, mas fiquei a cismar até que ponto, de fato, o mal-estar existencial, brotado em mim pelo suicídio de Augusto, poderia ter influído no meu mal-Estar físico. Não era preciso ser psicólogo ou místico para entender que o meu testemunho, do suicídio de Augusto, poderia ter sido uma espécie de coroação de um conjunto de extremadas emoções, e aí teria sido uma questão de tempo, até o meu abalo completo, em Ouro Preto.
​ Começando por outro testemunho, aquele da mais que mística conjunção de U. com Dala, meses atrás. Seguido pela repugnância e indignância, em relação à indigência existencial dos ricos e poderosos, ao conhecer os detalhes da Batalha da Distribuidora, narrada em Ratos e Ratões. E seguido ainda das andanças e aventuranças nos arredores de Passa-Quatro e, finalmente, depois pelas eróticas e carinhosas bem-aventuranças com as três irmãs. Reconheça-se: fora uma mui densa mistura existencial para um só ente humano, em tão poucos meses.
​ De toda forma, já era tudo passado, o enterro, e a vida, de Augusto, e a minha súbita doença, e a nossa tarefa em Dentópolis, e os nossos mágicos passeios Mantiqueira afora ou acima e, claro, o meu testemunho da grandiosa-espantosa navegagem de U. e Dala. Um longo ciclo se fechando, ou vários pequenos ciclos.
​ A minha doença foi depois diagnosticada como moderada, mas houve necessidade de me medicarem com antibióticos, sob risco de a coisa evoluir para uma pneumonia, bronquite ou coisa parecida. Claro que isso seria motivo suficiente para minha mãe e minha família me reterem em Ouro Preto por, no mínimo, um mês.
​22 – ouro, nascedouro de amores
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Mas não fiquei por mais que mais que dez dias. Não que eu quisesse contrariar ou preocupar a família que, com paciência, tolerava e até incentivava minhas danças e andanças e contradanças de presunçoso andarilho literário e revolucionário, sustentado financeiramente pelo nosso generoso general das palavras e da Revolução. Ora, se assim era, se o espanhol acreditava em meu potencial literário, e se achava que precisava muitíssimo mais de mim do que dos outros, não para consumarmos a Revolução Planetária, mas para ao menos semearmos, plantarmos a idéia do MPO, se González assim era, eu aprendera a não mais me sentir culpado de minha vida errante e improdutiva.
​ Porém, naqueles dez dias fui tomado por forte impasse. Por um lado, a recorrente vontade da desejável e desejante companhia das três irmãs, agora nós todos livres de amarras, lá em Juiz de Fora; eu esperara tanto tempo por aqueles momentos e vivências, e achava, antes do suicídio de Augusto, que somente me deleitariam dentro de semanas ou meses. E eis que agora me eram ofertados como excitantes e aconchegantes pérolas; claro, pérolas das Terras Altas, não do mar profundo.
​ Por outro lado, e voltando à minha família, mesmo sabendo que tinha a solidariedade e o respeito de todos – pai, mãe, irmãs, irmãos, até tios e primos – pela vida que escolhera, ainda assim queria evitar uma eventual contrariedade ou tristeza de todos, por eu não ficar mais tempo em casa, mesmo tendo sério motivo para isso – a eventual doença. O remorso e a dúvida vinham, e vinham fortes. Afinal, eu praticamente prometera-lhes, por telefone, quando ainda em Passa Quatro, passar um período mais demorado com eles, com ou sem ameaças de doenças.
Dissera-lhes, entusiasmado, que tinha tanto para lhes contar e muito coisa, do que vinha escrevendo, para lhes mostrar. Tinham achado muito interessantes as pessoas que eu conhecera, os detalhes da Batalha de Dentópolis e tinham ficado especialmente expectantes com nossa passagem por Aparecida do Norte – afinal eram todos mineiros e ouropretanos da gema. E agora, mesmo com ameaças de doença, eu lhes escaparia assim, sem mais?
​ Mas, por um outro outro lado, a própria família como que estimulava, disfarçadamente, a minha proximidade com a família de Altamiro e com as três irmãs, em especial com Priscila. Pois era visível que já tinha havido uma correia de transmissão entre os pais de Priscila e os meus, no tocante a um eventual namoro, ou coisa mais séria entre eu e a dourada garota serrana. Parecia que todos nos viam juntos, como uma só pessoa, o tal do casal perfeito. Essa disfarçada comunicação, e esse disfarçado estímulo, tornavam-se nem tão disfarçados assim durante os passeios que fazíamos, mostrando aos visitantes das mágicas Terras Altas os encantos e tesouros de nossa barroca e ancestral e também montanhosa cidade.
Isso era particularmente percebido quando visitávamos as igrejas, como se insinuassem a mim e a Priscila uma relação mais formal. Embora soubessem de minha zombeteira indiferença para com altares, sacramentos, matrimônios, claro que a minha família – e principalmente minha mãe e minhas irmãs – haviam se encantado com a possibilidade de tê-la ao menos como minha companheira constante, um relacionamento mais duradouro para a minha irrequieta existência.
​ Alguém que, inclusive, desse sustentação psíquica e moral para eu assumir seriamente um ofício qualquer – as ocupações de professor e de repórter e redator de jornal, em Ouro Preto e, depois, em BH estavam descartadas, tinham sido bem apressadas e entediantes, embora bastante elogiadas; e creio que a confiança própria da juventude, e a arrogância absorvida no meu convívio com U., Olavo e Ilídio, me faziam ver, em todo ambiente de trabalho e em todas as gentes do dito ambiente, uma mesma mistura de mesmice, mediocridade e mesquinharia. Os ímpetos da alegria, do aprendizado e da novidade duravam pouco, e a minha sede de liberdade e inventividade me exigia muito.
​ Com isso, sabia que a minha incapacidade para prover o meu próprio sustento causava inquietação em minha família, que insistia para que eu trabalhasse a sério, enquanto tentava conquistar uma incerta estabilidade financeira fornecida pela Literatura – o já tão conhecido conflito, impasse etc etc etc entre segurança e incerteza, entre trabalhar a sério e enfrentar o desafio, alimentar o sonho, trilhar a aventura etc etc etc de viver da e pela Palavra.
​ Mas eu lhes dizia que preferia trabalhar na roça ou na construção civil do que nos tais empregos respeitáveis; aliás, depois que conheci Olavo, comecei a aprender os segredos do nada respeitável ofício de pintor de paredes, no caso de urgências ou de mais sérias insistências por parte da família. Quanto à ancestral arte da agricultura, tinha razoável conhecimento das coisas da roça, já que de vez em quando fugia para a casa de parentes, que viviam da terra ou da criação, e lá os ajudava, com o que alegremente também aprendia com eles.
As coisas da roça, com sua força e ternura, e rude pureza e pura beleza e terna rudeza – já que sou de Ouro Preto, e já que é para ser barroco, conflitante, excessivo, abundante, ao menos tentemos sê-lo integralmente, abundantemente.
*
Foi então que González se instalou em Viçosa, trazido por Olavo. Eu e U. fazíamos uma de nossas costumeiras visitas a Ilídio, que há tempos já nos apresentara a Olavo, quando fomos levados à casa do espanhol – de certa forma, foram naqueles dias que se iniciou o nosso grupo literário e político, alimentado e consolidado por González.
​ Sem tornar a coisa muito extensa, à medida que ele conhecia meus escritos, e eu absorvia suas idéias e sua transcendente presença, instalou-se entre nós uma imediata empatia, que foi evoluindo para um convívio mais intenso do que aqueles que ele estabeleceu com Ilídio, U. e mesmo com Olavo e com os outros que vieram se agregando ao grupo. Novamente remeto-vos ao Não ia te dizer, de minha Helena, lá ela fez um retrato acabado e arguto de nosso grupo, mais do que eu próprio o fiz em Isaía, Irma e Baiano.
​ Aí se acabaram de vez os meus problemas de ordem financeira, e sem precisar recorrer às Organizações Tabajara, de saudosa e divertida memória. Pois, já que eu não tinha um pai rico como U., nem pertencia a uma família de comerciantes, como Ilídio, que trabalhava com seu impetuoso pai Bartolomeu, González tornou-se, não meu mero mecenas, ou patrocinador, mas uma espécie de pai adotivo.
​ Tentando encurtar ainda mais a coisa, chegamos a um ponto – pouco antes de eu conhecer Helena, aliás – em que ele tornou explícito que, quando morresse, deixaria a mim e a Olavo o suficiente para vivermos por longos e longos anos. Acho que encurtei muito a coisa, e faltou informar que o restante de sua herança iria integralmente para uma espécie de Fundo, que financiaria inicialmente o MPO, quando chegasse o momento e até onde fosse possível.
*
Voltando ao meu dilema, entre passar mais tempo com minha família ou acompanhar as três irmãs, por desejantes e promissoras estradas, foi o médico quem decidiu o impasse, ao prescrever mui bem vindas recomendações, no sentido de eu passar algum tempo num lugar menos frio que Ouro Preto, cujo inverno ainda iria bem mais longe do que, por exemplo... Juiz de Fora, que já perdia bastante de sua friagem. Assim, não foi preciso eu lutar contra meus remorsos familiares para poder escapar para Viçosa e, depois, Juiz de Fora.
​ Pois claro que lá era meu destino final. Sabido e consabido que não apenas Priscila, mas todas as três irmãs iriam para lá, ficar um ou duas semanas juntas. Pois que seria verdadeiro crime contra Eros e o Sagrado não aproveitar tantos e tão preciosos dias, como exclusiva companhia das Três Graças e, em especial, de minha Lolita da Mantiqueira. Digo exclusiva, porque felizmente os pais de Adriana não permitiram que ela nos acompanhasse. Mais uma ninfa em minha presença, e certamente com a tarefa de educá-la de forma erótica e transcendente, como militante do Sagrado, seria demais para mim.
Pois talvez tal quádrupla tarefa não deixasse as minhas faculdades mentais completamente i-n-t-a-c-t-a-s; além disso, as advertências e o irrecusável pedido de González, para eu não me envolver com a doce e também enigmática garota; Adriana, filha de?
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A propósito de amores, com suas coroas de flores e dores, a minha dourada e preta Ouro parece que os estimulava, ao menos em relação aos visitantes. Já lhes informei do meu hábito de, às vezes, chamar minha Ouro Preto de apenas Ouro, apenas isso, nem branco nem preto, pois não? Pretensioso ou racista dissimulado, eu? Dane-se, ignaros, e também os identitários rasos e fascistas, pois é pura questão poética e afetiva, e não vou me prender a cabrestos de nenhuma espécie, na minha relação com a minha cidade, meu segundo útero.
​ Mas aos nascentes amores em minha Ouro. Pois eu notava crescente afinidade entre U. e Priscila e, quem diria, entre Ilídio e Lena. Tudo bem que Ilídio ainda sofria como um condenado as suas sentenças e penas existenciais e afetivas – devido à fugitiva Elza – mas suavizá-las logo com a expansiva e superficial Lena, uma clara antípoda da melancólica e densa Eliza? Aquilo de Ilídio e da fantasmagórica Eliza, de Rio Pomba, já estava se tornando folclórico e, mais que tudo, preocupante. Talvez a tagarelante Lena o ajudasse, o desviasse de seus fantasmas, quem sabe por um longo tempo. Depois, se e quando Eliza aparecesse, os três resolveriam a coisa à sua maneira. Veja-se um pouco dessa estranha história em Não ia te dizer, na segunda parte.
​ Afinal, apesar de seu fechamento afetivo, de sua superficialidade intelectual e existencial, e apesar de sua idolatria à família, Lena tinha lá suas qualidades – a serenidade, a praticidade, a alegria de viver, além, é claro, das qualidades eróticas, que encantariam até mesmo um transtornado Ilídio. Ademais, forçoso era reconhecer que Lena evoluía a olhos vistos, depois de nossas estradas terem se encontrado, ou depois de minha errante estrada ter se encontrado com as altas e mágicas e sedutoras terras das três irmãs.
​ Aliás, deduzia que Ju e Priscila interferiam no modo de Lena ver e sentir o mundo e as gentes, fosse indiretamente, através das posturas e olhares, fosse mais diretamente, através de palavras mais diretas e direcionantes.
Quanto à aproximação entre Priscila e U., não me era de espantar. Confesso que tive leve despeito – afinal, quem em sã consciência dividiria de boa vontade, com outrem, um precioso e delicado ouro como Priscila? Mas eu já percebera, e admitia, e aceitava que Priscila era também uma fada dourada, uma fada que viera ao mundo trazer felicidade aos que a merecessem – embora sua vida nunca totalmente feliz, ou alegre, ao contrário da de Lena. E, assim, fazia-me bem a expectativa de meu sombrio e altivo amigo encontrar uma filha de Dala, a quem ele considerasse à altura de sua jornada, jornada quase totalmente solitária, não fôssemos Ilídio e eu, e González e os amigos do grupo, claro.
​ Há muito, desde a delirante noite com Dala, não víamos U. se interessar ou dar abertura para qualquer mulher ou jovem que fosse, e olha que não eram poucas; U. fazia atraente e magnética figura, com sua esbelteza e altivez, semblante denso e enigmática melancolia, e um constante desdém pelo que considerava como vulgaridade nas gentes de todas as classes sociais.
​ Havia aí um porém, inda que ainda difuso. Marcelina, a irmã de Ilídio, e prima de Helena, a quem eu considerava, se não como irmã, ao menos também como prima. Eu tinha certeza de que captava olhares de simpatia e atração e eventual entrega dela para U.. E não apenas isso. Eu claramente percebia que ela procurava, disfarçadamente, se interpor entre U. e Priscila, nas ocasiões em que os dois tinham tempo para um maior convívio. Estava sempre a lhes levar novidades, ou a fazer algum agrado para Priscila. Embora não agisse com postura mesquinha, intrigante ou algo assim, e sim de forma franca, aberta. Era a sua maneira de agir, não como fêmea a tentar descartar uma futura rival, mas de forma reverente, decente, apenas uma tentativa de preservar, também para si, um pouco da presença daquele que a magnetizava.
​ Eu sentia haver entre ela e U. espaços para encontros futuros, promissores e reverentes para ambos os lados. Mas também sentia que ela não estava preparada para um passo tão ousado quanto o de se dar a U., mesmo que não necessariamente em termos eróticos – principalmente em se tratando de Marcelina, que fizera a mesma opção pela abstinência sexual, seguidora do mesmo movimento católico, tal como Juliana, tal como mencionei em já distantes páginas atrás. E U. era uma referência por demais densa e ainda inatingível para ela, que, àquela época, ainda não tinha nada a ver com Literatura ou Letras – Marcelina estava para se formar em Arquitetura pela UFV – para agravar ainda mais a sua insegurança em relação ao, para ela, mítico poeta.
​ Alguns trechos sobre U. e Marcelina, inclusive alguns eróticos, no Não ia te dizer, segunda parte, de novo. Aliás, foi somente através de Helena que fiquei a saber da consumação dos amores deles, tempos mais tarde, quando eu e Helena já. U. nunca nada me adiantou, próprio de seu fechado feitio, até entre amigos. Com certeza que a Ilídio algo deve ter falado, que afinal irmão de Marcelina, que afinal ela também deve ter deixado o irmão namoradinho a par de tudo, menos dos eróticos momentos, claro. Mas nem Ilídio me disse nada, até a coisa se tornar pública. Grato a eles pela consideração.
​ Mas, a par de tudo isso, é claro que Priscila, com a famosa intuição feminina, percebia tudo aquilo em Ouro Preto. E não creio que haverá disputas e problemas entre elas com relação a dividirem U., afinal estarão apenas colocando em prática as idéias de amor livre, reverente e transcendente, defendidas pelo MPO; amor e erotismo que não se esgotariam apenas no outro, mas agiriam como ponte para uma maior reverência e cuidado com os entes e com o Sagrado. Já falamos disso o suficiente lá em na Mantiqueira.
Dvisão amorosa no futuro, claro, pois até então nenhuma delas ainda se enlaçara com U., e muito menos eu permitiria que ele se engraçasse com Priscila, enquanto eu próprio estivesse enfeitiçado por ela, nem ele teria tal cretina e animalesca atitude; bem próprio de U., de nós.
Mas, o que me espantava, era somente eu perceber tais sutis e elegantes manobras, não acontecendo o mesmo com Olavo, González, e até mesmo o irmão de Priscila, Fábio. Mas já não estariam U. e Marcelina em discretos inícios de aproximação, lá em Viçosa? E então eu é que estaria defasado em relação aos fatos e sentimentos presentes ali em Ouro Preto? Não o saberia dizer. Aliás, acima referi-me a Olavo e González porque os dois tinham verdadeira e apaixonada ternura por Marcelina. Víamos a doce irmã de Ilídio como a nossa mascote e, ao mesmo tempo, como anjo a ser por todos nós protegido.
Se bem que, dentre em breve, haveria outro anjo a ser cuidado, outra mascote para o grupo. Juliana, é claro. E entre as duas é que não houve mesmo disputa ou despeitos. A afinidade foi imediata e sorridente, como eu intuíra, embora a diferença de oito anos a favor de Marcelina. Mas diferenças de idade nada dizem quando se trata de homens ou mulheres, ou jovens, convocados pela Literatura, pela Voz. Ademais, as suas doçuras e singularidades, tal como aquela da opção pela abstinência sexual e participação no tal movimento católico. Por isso, a identificação quase total.
Não se desgrudavam, claro que sem excluir minha irmã mais nova, Isadora, de seus passeios e fuxicos juvenis-femininos. Afinal, pelo que eu já pressentira, Isadora tinha ímpetos de seguir minhas pegadas literárias e revolucionárias. E, à medida que fora conhecendo as pessoas de nosso grupo, e principalmente depois de conhecer Marcelina, esses ímpetos se acentuaram, e se tornaram conhecidos de toda a família. Isadora tinha ainda seus dezessete anos, tal Lena. Preparava-se para Letras, na UFOP. Novidade. Pobres meus pais.
E, interessante, tornara-se amiga, no cursinho pré-vestibular da doce-atrevida Denise e de, nada mais nada menos, do que a fulana Silvana, a ainda mulher, oficialmente falando, de Maciel, já que nunca e divorciaram. No Isaía, Irma e Baiano falo dela, de sua saída de Itabirito e de sua ida para Ouro Preto, após sua erótica cretinice com o mecânico Ludovico, em Viçosa, e o seu imediato abandono por parte de um desdenhoso e melancólico Maciel. Silvana resolvera, em época tardia, iniciar seus estudos superiores. Sabe-se, nunca é tarde para começar. E queria cursar História. Veja-se só. Interessante. Três promessas para o MPO de Ouro Preto. Quem sabe, até ajudar numa eventual reconciliação de Maciel com. Tudo podia ser. Isso era lá com ele. Ah, as estórias de Ouro Preto, que eu ainda não pudera contar.
Mas, à parte Isadora, Denise e a fulana Silvana, penso que alguma coisa se transmitiu, entre Juliana e Marcelina, acerca do magnetismo dessa última por U.. Juliana deve ter lhe acalmado e esclarecido, e também a Isadora, um pouco mais das nossas idéias acerca de erotismos e amores. Afinal, comigo e com as irmãs, ela adquirira mais experiência e segurança no tema. Deve ter mesmo lhes confidenciado um pouquinho de minhas vivências com as três. Entre mulheres, nunca se sabe. Eu sabia que, nessas coisas, sempre pisava em ovos. Deve ter sido por isso que Marcelina passou a se sentir cada vez menos intrusa e inoportuna toda vez que se aproximava de U. e de Priscila, quando juntos. Ao contrário, sentia-se acolhida, ou ao menos bem vinda. Principalmente quando ia em companhia de Juliana.
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AVISOS
Todos os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção, não se referindo, de forma alguma, a pessoas ou fatos concretos. Qualquer semelhança ou coincidência terá sido mera ficção.
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