
M O S A I C O S
E s t r a d a s V i t ó r i a
ÍNDICE
Olavo. 8
dupla acidez. 9
Ilídio. 12
na pensão. 13
cis-silêncios, cismas. 14
no cerrado. 21
Maurício. 25
um trabalho sepulcral 26
uma militância triunfal, redentora. 31
uma temporada solidária e transcendente. 35
nossos abortos de cada dia. 43
os nascimentos de cada dia. 45
transtornos e contrapontos. 49
U. 54
de luto na praça. 55
zona metalúrgica. 59
na zona da mata. 67
Elza. 73
ela, enfim.. 74
elza e a beleza. 77
a epifania das imagens. 81
Maurício. 85
um mundo vivo de gentes vivas. 86
o julgamento, apoteótico acontecimento. 87
um tribunal popular, outras epifanias. 91
a marcha chega ao podre planalto. 96
um pouco de literatura, pra variar 100
Helena. 102
meninas do MPO. 103
Lázaro. 109
a aparição de maurício. 110
a tarde na piscina, os passeios. 112
Maurício. 116
pt, saudações, de volta às aflições. 117
Priscila. 129
Maurício. 130
Olavo. 131
maurício e mariane. 132
ilídio e eliza. 137
topêra. 139
Ilídio. 156
Maurício. 161
U. 162
Eliza. 167
Maurício. 168
Helena. 169
Lázaro. 170
Mariane, uma inoportuna. 171
o poeta maltrapilho. 173
o ladrão de palavras. 174
Maurício. 179
próximo ao abismo. 180
a primeira vez que Aninha amou. 180
Maurício e Eliza. 180
Priscila. 182
Olavo
dupla acidez
Saco. Caralho. Não tô a fim de pensar em Maurício agora, nem no seu suicídio, nem até aonde a gostosa de sua mulher Mariane teve culpa na coisa. Dane-se. Que ressaca de merda, tão boa pra se viajar pra tão longe. E que viagem de merda pra se viajar com uma ressaca dessas. Vitória do Espírito Santo. Que bosta, hein. Já estive lá. E não gostei. E ponto final. Achei a cidade, não feia, até que bem bonita, mas fria, esquisita, rasa. Mesmo porque não suporto praia. Não é à toa que Maurício tenha se matado lá. E o seu trágico suicídio ainda obriga a gente a ir até lá. Já deu pra ver que estou em forma, sou eu no meu melhor. Não enche o saco, caralho. Se bem que isso de suicídio tá virando moda entre nós. A doce Helena quase foi embora, o nobre Augusto se foi, não ficou no quase, e agora não se sabe ainda se o transtornado Maurício se foi ou se também ficou no quase.
Marcelina e Helena estão grudadas no celular, à espera do tal sinal e de notícias. Acho que vou pensar nessas coisas, nessas novidades tecnológicas, neste tempo no qual fomos jogados pela Voz e pelo Mistério, sem prévio aviso; como se tivéssemos dado um salto de uns vinte anos no tempo. Prefiro pensar nisso, neste adorável mundo que encontramos. É mais agradável, quer dizer, dá pra vomitar bastantes palavras em cima dessa coisa, o que eu não poderia fazer em cima do suposto cadáver de nosso amigo Maurício.
Vomitemos, pois. Mundo de merda. A cada década, mais uma cagada. Agora, isso de internet, celular, redes sociais, inteligência artificial e o caralho a quatro. Como esses idiotizados conseguem viver num mundo assim, eu não sei. Tudo bem, já nasceram no meio dele. Mas, com isso, parece que nosso venerável líder González errou feio, com o papo dele de ver essas tais promissoras criaturas humanas como cintilações do Espírito Absoluto. Celan:
as criaturas aparentemente celestiais
Quanto tempo perdido ouvindo e botando fé nas palavras de González, ingênuas, mas sempre magnéticas palavras. Mas errou feio agora. Pois se as celestiais criaturas de Celan fossem realmente cintilações do tal Espírito Absoluto de Hegel, elas não cairiam tão pateticamente nas esparrelas idiotizantes desse tal mundo cibernético. Reagiriam, saberiam se ver como pessoas, carregariam dentro de si a capacidade de se verem como entes humanos dotados de sacralidade e, portanto, não se tornariam essa lastimável essa mistura do animalesco com a robotização.
Alguém perdeu feio nisso aí. Ou o Espírito Absoluto perdeu a parada para o Capetão, o maligno patrão do porco Capetalismo – isso é das Gêmeas, tá lá no Passeios, ô babaca. Ou González valorizou demais a importância que o Espírito Absoluto e o Mistério dariam para essa estranha e lastimável entidade chamada humanidade. Ainda a ver o desfecho. Não de camarote, mas ao menos sentado num boteco qualquer lá de Viçosa ou Ponte Nova. Lavo as minhas para com essas esperanças de transcendência e revolução de meu amigo González. Dane-se.
*
Claro, como hegeliano, e como filósofo de alta categoria e de altíssima argúcia que é, González já encontrou explicações e argumentações. Para nos tranqüilizar com relação a todo esta tempestade de mudanças em nossas vidas neste novo e maravilhoso e criativo e inventivo milênio. Eca! Para ele, normal, apenas mais um passo que a Técnica dá rumo ao abismo, rumo à sua autodestruição. De alguma forma isso já estaria previsto. O tal do desenvolvimento das forças produtivas dentro do Capetalismo fatalmente levaria a estes excessos de sofisticação tecnológica, de imbecilização e de embotamento coletivo. O Capetalismo não tem mais saídas, precisa inventar necessidades idiotas e oferecer mercadorias para as demandas idiotas das pessoas.
De formas que todos se maravilhem, se imbecilizem e se entorpeçam o suficiente, e tudo pareça novamente o melhor dos mundos. E a Técnica continuando a reinar soberana e implacável, elegante e cada vez mais sofisticada, ou cada vez mais complicada. Para González todo esse excesso da Técnica é apenas o seu canto de cisne. É aquilo que fará com que os entes humanos despertem de sua letargia e de seu cansaço e de sua solidão. E finalmente decidam por um fim ao Inferno da Técnica e ao filho da puta do Capetalismo e dos porcos imperialistas. Tudo por tudo, é a velha alegoria: quando uma besta-fera está morrendo ela escoiceia para tudo enquanto é lado, como forma de evitar sua extinção. E nisso tudo o que está em volta, ou que está ao alcance das patas da besta-fera, sofre terrivelmente as consequências desses malditos e estúpidos e obsoletos e apodrecidos coices e urros selvagens.
Assim seria essa época de internet e outras porcarias. Apenas mais uma etapa das forças produtivas que cresceram dentro do Capetalismo que acabarão por extinguí-lo, ou superá-lo. Para González, espalhafato demais em torno de pouca coisa. González, o eterno otimista e obcecado pela Revolução Planetária e pela Redenção da Humanidade. Grande porcaria, redimir essa gentalha. Já botei fé nessas suas sedutoras convocações. Não digo que vá abandonar o grupo e o MPO, mas vou ficar cada vez mais na minha. Se bem que, no começo de tudo isso, até González andou bem assustado com a tempestade de todas essas novidades. Foi exatamente com o professor Marçal, do MPO lá de Vitória, que ele pode clarear as suas idéias.
Mas chega disso agora. Não tô a fim de me entusiasmar novamente em excesso com as idéias revolucionárias e messiânicas de nosso general espanhol. Mas só pra registrar: o próprio Lázaro, seu braço-direito, parece estar um pouco cansado e desiludido de tudo. Principalmente depois daquela braba noite que ele viveu lá em Ouro Preto e que descreve ao final de seu Passa-Ouro – e descreve magistralmente, admita-se-o. Parece que já não é o mesmo crente e ardente combatente a serviço da tal Revolução Transcendente Planetária. No fundo, Helena é quem segura a sua barra, é quem impede que ele se afunde em mais uma de suas paralisias criativas.
Ilídio
na pensão
— Maurício se matou! – o fato, ouvido.
perplexidade. mudez assustada e impotente. paralisia do próprio eu. pois nessas horas a gente nem sabe o que pensar sentir ou falar. na verdade, mais do que não saber, a gente simplesmente não pensa, não sente e nem fala nada. dá um branco em tudo – na mente na alma e na fala. a gente apenas ouve.
a assombrosa-paralisante notícia veio-me na voz de Olavo, viajando de Viçosa via celular:
— Maurício se matou!
quisera eu que fosse mais um de seus estúpidos e desrespeitosos sarcasmos. mas o tom não era de brincadeira – seco condoído de verdade. além disso nem mesmo Olavo brincaria algo assim. continuei apenas à espera, mas Olavo não dizia mais nada. somente depois de indefinidos instantes é que logrei algumas perguntas feitas de forma confusa.
— quem informou? foi em Vitória mesmo? foi comprimido?
eu saio do quarto e vou para uma espécie de varanda bagunçada poeirenta nos fundos da cozinha. era exatamente meia-noite e meia quando Olavo me ligou. inda indaguei se estava em casa de González. então me despedi e desliguei.
não, Olavo estava na sua casa telefonara para o filósofo espanhol cerca de vinte minutos antes me ligar. González fará contato com a família a ver se precisarão que algum de nós vá a Vitória, ajudar nos trâmites necessários nestas ocasiões. há de se lembrar que adquirimos alguma experiência nisso, quando da atribulada morte do mendigo Baiano que um comovido Lázaro relatou em Isaía, Irma e baiano e do suicídio de Augusto, em Itamonte, sul de Minas, que Lázaro narrou, tão brilhante quanto, em Passa-Ouro.
volto para a cama. somos mais dois no quarto – um servidor público da polícia civil e um artesão peruano. pressentem que algo de muito grave me foi comunicado mas mantêm-se silenciosos. fazem que dormem mas eu sinto que não. e eu me remexo na cama sei que não conseguirei dormir. claro que ainda estou tomado por uma mistura de tristeza perplexidade e desorientação.
*
mas esta tensão silenciosa, em meio ao escuro do quarto, não poderia mesmo durar. é Zé Roberto o servidor quem se senta na cama e se serve da palavra:
— então, meu amigo Ilídio, se abre com a gente... o que aconteceu?
não tergiverso, vou direto ao ponto, o tanto que estava pronto e precisado de falar:
— um amigo nosso de Cataguases matou-se hoje à tardinha, lá em Vitória... Maurício, já te falei dele...
— díos mio! maria imaculada! – embora ainda no escuro deu para perceber que ele levava a mão à boca. a expressão em espanhol se deve ao fato de estar treinando o idioma com Felipe desde que o peruano se mudou para o nosso quarto.
Zé Roberto é, como se percebe, bastante teatral. mas geralmente são sinceras as expressões de seus sentimentos principalmente em situações como a desta noite.
pede-me detalhes acerca do suicídio. ficou deverasmente chocado com o ato extremo. sabe muito a respeito de Maurício, tanto eu lhe falei acerca dele ao longo dos quase três meses em que dividimos o quarto. Zé Roberto desenvolveu uma intensa vontade de conhecer Maurício. acha fascinante os seus excessos emocionais a sua personalidade desajustada a sua atribulada história.
eu para espairecer decido de súbito ler para eles alguns trechos de uns meus escritos, cujas cópias tenho comigo. têm um pouco a ver com Maurício, que aliás achara as palavras extremadas e densas e ao mesmo tempo doces e desamparadas. leio para eles a íntegra de um desses escritos. o momento desse meu antigo ensimesmamento passa-se em Viçosa, na pracinha do Rosário.
cis-silêncios, cismas
eu sei eu sei eu nunca fui alegre ou agradável pessoa. engraçado a palavra agradável me lembrou outra – canavial, eu um extravagante do mundo e de mim mesmo em busca dos muitos mins. que estiveram sempre dentro dos labirintos de canaviais que sou. e falar en frutas há um cheiro antigo de tangerina aqui na pracinha. é que me lembrei de minha irmã a menina tangerina Marcelina. foi aqui que soubemos da estória de Robert e Elsie e foi aqui nasceu a escritora Marcelina, saudades de suas muitas companhias e carinhos para comigo ela que agora creio que está em Belo Horizonte ou São Thomé das Letras, extravagante cidade onde U. vagou e vagiu suas primeiras perplexidades.
acho que hoje vou ficar aqui um bom tempo. ô tempo bom o de hoje, pois não, irmão crente que passa de bíblias debaixo de braços, que coisa folclórica, em que quente esperança crês eu vos pergunto. o tempo bom que não volta nunca mais mas que tempo bom é esse de que falo eu extra vagante do mundo?
eu sei eu sei eu sei que nunca fui alegre ou agradável pessoa o que não me impede de reivindicar o direito de sentir uma vaga difusa saudade, triste frágil desamparada saudade de um tempo que eu não sei quando, se é que foi.
hoje é mesmo dia de cítricas frutas e meninas veja a menina que passa com sua laranja já pela metade com que encanto encara a tarefa de sugar e sentir a fruta. até parece ter ganhado de presente dos deuses. de seu bom pai foi que ganhou de seu bom pai que ainda por cima a carrega na garupa da bicicleta pra cima e pra baixo. deve ser uma boa pessoa pelo menos para ela, na verdade ele é para ela o próprio deus em pessoa, eu conheço eu conheço esse sujeito é lá das bandas do Pau de Paina é pedreiro é conhecido de Olavo e está meio tontinho olha só o jeito cantante do sujeito pedalar.
está andando longe ele quer dizer longe não para ele nem para mim mas para andar com sua menina filha em garupa de bicicleta. eu acho assim mas não sei não tive e certamente nunca terei um menino filho ou uma filha menina. já te falei, filha? que se um dia tivesse uma criança queria que fosse uma menina e ela se chamaria Ronise. o nome que só ouvi uma vez na vida depois te conto depois te conto. engraçado estou como que falando com a filha que não nunca terei jamais em tempo algum seria isso possível? bem em literaturas tudo é possível Marcelina ou prima Helena ou mesmo a iniciante Juliana bem que gostariam de uma assim idéia. para uma estória de um pai que conversa com uma filha que nunca teve. como eu que em tempo algum um pai jamais serei.
*
em tempo um urgente tema se levanta. em tempo em tempo. é preciso esclarecer dois pontos quer diz esclarecer apenas um ponto. se digo dois pontos é porque às vezes a gente pensa como se estivesse escrevendo. embora no caso eu queira escrever aqui aquilo que estiver pensando durante todo o tempo em que aqui estiver. bom mas o ponto o urgente tema a esclarecer é que aqui vim. e aqui vim lançado laçado jogado empurrado magnetizado foi por motivos de tristezas e desamparos e solidões. que bela novidade essa hein extra vagante do mundo.
na verdade gosto mais da palavra que Lázaro usou ao fim de sua obra, quando ele se senta naquele banco lá na escola de minas de Ouro Preto. ele usou a palavra desentranhado do mundo. mas lá no meu começo desentranhado não rimaria com canavial. claro na verdade a palavra extravagante não rima tanto assim com canavial mas ao menos há alguma parecença em suas presenças. para mim isso é claro como o alegre verdor de um canavial ou de um bambuzal. se fosse o caso, se bambuzal rimasse melhor.
Lázaro aliás é vidrado num bambuzal então fica como homenagem a ele. Lázaro sim é sujeito que produz que age que combate o bom combate tanto quanto González tanto quanto Helena tanto quanto Marcelina. quanto a Olavo não sei se é tanto quanto os outros até hoje não o sei. o que sei é que Lázaro e os outros não são como eu e U.. embora na dita cuja bela obra Lázaro tenha como se sabe entregado um pouco os pontos e confessado um pouco de suas perplexidades e incertezas. quanto às suas crenças e verdades quanto às suas crenças na sua verdade ou nas verdades que todos nós do MPO professamos. na verdade Lázaro confessou perplexidades e incertezas quanto à própria verdade da vida.
na verdade Lázaro apenas desvelou todos os pontos em comum que tinha comigo e com U. e porque não dizer com Olavo.
mas o ponto a esclarecer, ou já esclarecido. o motivo de vir aqui para a pracinha do Rosário de parar aqui na pracinha antiga. digo antiga primeiro porque ela tem mais cheiro de antiguidade que a praça da Matriz talvez seja porque seja pequenininha e delicadinha e escondidinha. depois porque ela me lembra meus passeios com Marcelina nossos tão antigos passeios que se perdem na memória. Marcelina era de fato menina não é modo de dizer tinha dez anos talvez eu então quinze quando ela se apaixonou aqui pela pracinha do Rosário toda limpinha e delicadinha. como eu, Dio, também me apaixonei ela já me chamava e até hoje só me chama de Dio, na boca dela Dio me lembra deus mas na minha cabeça às vezes me lembra o diabo o diabo a quatro num quarto escuro.
então nossos pais me pediam para passear com ela e Marcelina era irrequieta como ela só. Marcelina era sim errante e irrequieta em minha companhia queria ir a todas as ruas e recantos da cidade. dizia que queria ser andarilha quando crescesse como se já não fosse como se já não tivesse contraído a nossa doença de cada dia, a errância. ou como se já não tivesse nascido com ela.
então quando aqui a trouxe ela sossegou o facho como num passe de mágica ou como feitiçaria. por bom tempo esqueceu as andanças pela cidade e só queria saber daqui. de aqui se sentar comigo e ficar conversando por longos tempos. depois claro que retomamos as algumas andanças por Viçosa mas o ponto de partida ou de chegada era sempre a pracinha do Rosário. engraxado. é com x mesmo que estou pensando não me enxe o xaco. engraxado que foi com Marcelina que conheci ou descobri variados lugares ruas vielas morros paisagens ângulos de nossa cidade que até então não imaginara. mesmo porque ainda não tinha amigos a quem podia considerar como tais.
*
Eliza acabou de entrar aqui e agora dentro de mim.
este às vezes quase sufocar em si próprio parece que você está sobrando no mundo em excesso. não apenas no sentido de estar afastado das quase todas pessoas. mas no sentido de estar deslocado fora do mundo mesmo um trêmulo e tonto sujeito a vagar inútil pelo planeta. a ter que se carregar por anos a fio até que a teia se rompa até que a Indesejada infalível a vingativa se aproxime por detrás e te carregue para o para o... esses momentos de sufocar me lembram sempre as profundas e acariciantes palavras de Clarice no seu de profundis. foi isso foi isso foi assim mesmo que Eliza entrou aqui em mim pois ela gostava e ainda deve gostar tanto desse texto de Clarice. quer dizer ela não gosta apenas. ela o lia como se estivesse rezando lamentando testemunhando a perplexidade que nós víamos em tudo.
tanta peregrina tristeza a perambular pelo coração do mundo e do tempo, assim eu e ela às vezes víamos o escoar dos instantes no mundo no Cosmos.
quando às vezes ouso ou preciso flagrar-me no espelho é então quando detecto esse olhar exageradamente assustado e interrogativo, parece que brotado da própria perplexidade. um olhar que incomoda e assusta e dá pena até a mim próprio que o carrego como um condenado. triste e patética criatura que se me revela às escondidas nesses nada esplêndidos espelhos da vida por onde ainda nado a custo. o sujeito acostuma-se com tudo nesta vida até mesmo com a vida até com o fardo de si mesmo no meio da vida.
*
não eu nunca fui alegre ou agradável ou algo assim a não ser nos momentos em que me reúno a Marcelina a meus amigos em horas assim até que a minha roda da vida me anda menos áspera e queixosa. é de cair o queixo é de cair o queixo como ainda ouso lograr essas algumas alegrias.
o que importa é que a vida ainda existe, existe de fato, não é apenas algo sonhado ou almejado. meus amigos escritores e poetas e filósofos e boêmios assim me ensinam. a menina da laranja e da bicicleta e a fantasiada e meiga Ronise também me ensinam.
acho que o que nos atemoriza mesmo é esta sensação de que depois que morrermos somente nós estaremos sozinhos e abandonados. para sempre vagando em silêncio escuridão e, claro, em clara solidão. o que atemoriza ainda mais é achar que teremos uma absurda consciência dessa estranha jornada através da eternidade. consciência de nós estarmos afastados e os outros todos juntos, reunidos protegidos e protegendo-se no seu morrer coletivo.
ora para começar há nisso um contrassenso. pois se é para morrer então para que continuar a existir, continuar a ter consciência-de-si desse jeito? uma consciência ou uma alma se você preferir entregue ao inferno eterno da solidão e da fragilidade. isso de esperança em alguma relação especial nossa com o Ser e com o Mistério: Cristo um fundador, Hegel um pregador, Heidegger um regador, Sartre um negador. e González obstinado ou desesperado com essa suposta relação especial.
Mistério que a tudo justifica e um dia tudo esclarecerá ou mero demiurgo impotente, incompetente e mal humorado, apesar de onipotente?
*
até o peruano Felipe se comoveu.
e assim nós três passamos quase toda a noite conversando narrando casos de mortes e suicídios de conhecidos falando do sentido e da precariedade da vida de nossa constante exposição a perdas e perigos diversos – acidentes derrames o monstro câncer quedas financeiras desamparo amoroso a solidão, seja nas grandes ou pequenas cidades.
— é, seu Guimarães, viver é mesmo muito perigoso... – Zé Roberto é pessoa com razoável grau de leitura e, com unhas e dentes, também defende Guimarães Rosa como o maior escritor do país e um dos maiores do mundo.
eu ainda leio um ou outro escrito meu, mas lá pelas três horas vamos dormir. já não é sem tempo, pois Zé sugeriu que fôssemos a Vitória, à parte do que González Lázaro e Olavo decidam em Viçosa. diz que consegue as passagens na polícia civil ou diretamente com a empresa. a questão era contar com a sorte para que o ônibus não estivesse já cheio. portanto teremos apenas cinco horas para dormir um pouco arrumar bagagens e conseguir as passagens, além de deixar avisos recados e que tais.
mas antes de dormirmos ele faz um último comentário, ao qual eu não tenho o que retrucar:
— Ilídio, você há de convir: ao fim e ao cabo, como vocês escritores gostam de dizer, não poderia ser outro o destino de nosso atribulado amigo...
e para concluir mandou uma de suas típicas tiradas ora filosofantes ora irônicas nunca o sabemos:
— já quanto a você, meu caro, isso nunca terá consequências sérias, afinal você nasceu mesmo foi só para enfrentar os capetas dos ínferos infernos, não é mesmo? mas sempre continua de pé, né mesmo? você é que nem seu amigo Lázaro, que sempre renasce, sempre faz jus ao nome.
- Zé Roberto, às vezes a gente não consegue atravessar de volta e fica no purgatório...
pois depois do suicídio de Augusto e agora o de Maurício eu já não tenho tanta certeza dessa capacidade de renascer de me manter vivo lúcido e crente, tendo como única tarefa a de relatar ou de escrever, se se preferir assim, o mais que possa acerca das pessoas – suas dores êxtases desamparos gozos lutas desafios perplexidades – e das coisas e dos entes que brotam do Ser, como aprendi com González e com Lázaro.
no mínimo talvez seja realmente necessário um longo período no purgatório, antes de retornar ao reino da vida ofertado pelas palavras. no mínimo. disso para pior. a morte de Maurício definitivamente me choca, abala, espanta, tanto quanto fez a de Augusto.
*
Marcelina largou em definitivo a sua patética profissão de arquiteta, patética como toda profissão, esclareça-se, ela tem ajudado lá na Distribuidora, no meu lugar. por isso pedi um tempo ao meu pai Bartolomeu e vim passar uns tempos aqui em BH. e vim parar na mesma pensão que Maurício morou durante a maior parte do tempo de sua breve passagem por BH. não por coincidência e sim de caso pensado já que tive acesso a alguns de seus escritos acerca da pensão da Vanda. até parece que eu já intuía o seu suicídio e estava em busca de um pouco do inventário de sua vida.
mas não era nada disso apenas estava à cata de material humano e existencial, e o combativo Lázaro já me confirmara que de fato farta fauna humana havia por aqui. foi por isso que declinei da confortável hospedagem ofertada por U. durante as semanas que passaria aqui. a pensão fica na rua Espírito Santo e além disso foi a mais barata e razoavelmente habitável que pude encontrar no centro de Belo Horizonte e tem servido admiravelmente aos meus propósitos.
e após a volta de Vitória narrarei os variados tipos que tenho conhecido ou apenas observado durante o tempo que estou passando na Vanda. desde um agressivo enjoativo e estúpido bêbado (no sentido de coitado, primitivo) até um quase intelectual, Josalberto, aposentado do Banco do Brasil por distúrbios psíquicos, e que tem paixão por cinema de conteúdo, não sai do Palácio das Artes. passando por Amaral, contador e praticamente expulso de casa pela mulher, pedagoga, que o visita regularmente e às vezes o leva de carro para algum lugar. seu Laurindo, boêmio das antigas, ainda viveu um pouco da gloriosa época dos cabarés e agora cada vez mais decadente pobre e embriagado em companhia do idiota Sérgio, o estúpido bêbado de cabeça fraca.
e também a fogosa e delicada Gláucia, que vive a colocar chifres no noivo, futuro médico, que por sua vez vive almoçando lá na pensão, a modo de vigilância e de marcar território. a maioria dos hóspedes afirma que ele desconfia ou tem certeza das escapadas de Gláucia com Fernando Macaé alto forte louro que vive tentando a carreira de modelo mas somente conseguindo trabalhos menores. aliás numa noite melhor numa alvorada, em que chegara bêbado faminto de sexo e certamente drogado, Macaé simplesmente esmurrou a porta da cozinha por longo tempo, exigindo aos berros a presença de Gláucia para apenas poderem conversar um pouco. aquilo quase acabou de vez com a reputação da fogosa garota.
mas Amaral que sempre cedo se levanta não deixou o escândalo prosseguir aos poucos pacificou Macaé. fez-lhe ver o absurdo de sua atitude àquela hora em pleno domingo todos dormindo. e o quão desrespeitoso estava sendo com Gláucia se de fato gostava dela deveria render-lhe um mínimo de respeito.
tanta gente à nossa frente e em cada vida dessa gente tantas histórias, um caminhar no meio do mundo e das pessoas, um caminhar que merece ser contado guardado. tal como Lázaro, Olavo e U., somente tenho ojeriza e antipatia para contar as vidas da despersonalizada classe média.
a propos, tem coisas que coisas que nos dão calafrios ou ao menos o que pensar: o pai de Maurício morreu atropelado no Espírito Santo, Maurício morou na rua Espírito Santo, foi trabalhar no Espírito Santo e se suicidou no Espírito Santo. se fôssemos nos ater somente a essas estranhas ligações, pareceria que, de santo, o espírito desse lugar não tem muita coisa. um pouco de superstição e mórbida brincadeira é lídima a quem ainda em estado de choque encontra-se. de toda forma sabemos que todos os lugares e entes do mundo estão prenhes do Sagrado do Ser do Espírito da Presença e por aí afora, falei bonito, mestre González?
Maurício
um trabalho sepulcral
Maurício colidiu, terrível e frontalmente, consigo próprio, uns quinze anos depois de se mudar para Vitória, e uns sete anos após conhecer Mariane. Tudo começou quando sua companheira se recusou a acreditar no seu projeto de construção civil – quatro apartamentos e uma ampla loja no andar térreo. A obra estava adiantada, com direito até a uma garagem subterrânea, já coberta com uma robusta laje de mais de duzentos metros quadrados. E a obra era em Laranjeiras, o mais valorizado bairro de Serra.
Era a realização de seu grande sonho, a sua libertação, a sua chave para escapar da gaiola dourada do serviço público. Durante quinze anos poupara o suficiente – o salário no Judiciário era excelente. Fizera a sua reserva, mas sem deixar de aproveitar a sua vida, à sua maneira, à maneira de um autista moderado, com certa fobia social e aspirante a escritor, mas com bastante liberdade de movimentos, inclusive na sua atuante militância política, como veremos.
E, isso, mesmo sem ainda ter uma companheira com quem viajar e partilhar momentos, quer dizer, de forma mais discreta, solitária, ou recolhida. Somente conheceria Mariane uns cinco anos depois de sua chegada em minha terra. O que afinal, mesmo sem ele ter planejado tanta economia, ajudou a, literalmente, erguer o seu projeto de libertação de emprego, horário, rotina, monotonia, ambiente de trabalho insosso, esquisito, público estressado, advogados arrogantes, presunçosos, medíocres ou simplesmente chatos.
Claro que não generalizava. Conhecera excelentes e interessantes pessoas e profissionais, naqueles quinze anos, tanto quanto conhecera criaturas lamentáveis. Talvez sobre espaço para falarmos de umas e de outras, tanto dos juízes e dos colegas servidores de Maurício, quanto de advogados e público em geral. Seria divertido e instrutivo. Enfim revivia, na Justiça de meu estado, toda aquela agonia que, em escala menor, vivenciara na repartição pública da prefeitura de Belo Horizonte.
Mas já sabia que, na esmagadora maioria dos locais de trabalho, a coisa era daquele jeito mesmo, mistura de mediocridade, mesquinharia, mentiras, má vontade (para ficar somente na letra M, aliás, por irônica coincidência, M de Maurício, claro), não era monopólio do serviço público, muito menos do Judiciário. Já tinha lido, em algum lugar na internet, que poucas eram as pessoas realmente felizes e plenas no seu trabalho, havia estatísticas e estudos sérios sobre a questão.
Mas nem precisava acadêmicos e ‘especialistas’ se meter no assunto, com suas doutas e pomposas análises. O arguto Profeta Barbudo Marx – como o chama o filósofo González – já profetizara aquele estado de coisas – e o que mais um Profeta faz na vida, cara-pálida? Copiei Olavo, anote-se.
Bastaria lembrar o seu conceito de alienação, no qual aponta que, entre outras diabólicas artimanhas, o maldito Capetalismo, para se manter ativo e dominante, promove o progressivo distanciamento entre o trabalhador e o seu ofício, o fruto do esforço de suas mãos ou de suas mentes e, claro, o distanciamento entre o trabalhador e o seu ambiente de trabalho. E pronto, já estava tudo explicado havia mais de século, sem necessidade de repetitivas e enjoativas, análises e entrevistas de acadêmicos e jornalistas, sempre supostamente inventivas,
*
De toda forma, aquelas “descobertas” não interessavam a Maurício, o fato é que tudo aquilo era uma verdadeira tortura para um autista moderado e com fobia social como ele. Tanto que, apenas cinco anos após seu ingresso no serviço, mal completado o seu estágio probatório, e lá estava ele, pela primeira vez na vida, no consultório de um psiquiatra, recomendado por uma simpática e decente colega. Foi com o arguto e sensível profissional que ele, Maurício, soube que o seu problema era exatamente a tal da fobia social. E estava já tão abalado e frustrado com tudo aquilo que, mal começou a contar ao psiquiatra aquilo que o afetava, para sua surpresa, teve uma crise de choro.
Ali percebeu como era séria a coisa, ali aceitou que nem filósofos e escritores, como ele e seus argutos e desdenhosos amigos de Minas, estavam imunes aos tais sintomas psíquicos, como sempre proclamavam, triunfantes, como se pairassem acima daquelas questiúnculas psicológicas, científicas. E ali começou sua lenta mudança de rumos e o desenho de seu projeto de libertação de tudo aquilo.
*
Na verdade, nos primeiros dez anos sequer imaginara que um dia iria se envolver com construção civil. Economizava apenas para consolidar uma polpuda reserva, a qual lhe permitiria, ao menos, uma licença sem remuneração, por alguns meses. E, durante essa licença, preparar-se para um outro concurso, em outras terras, fora de Minas, dando seguimento ao seu projeto de vida, traçado ainda lá em BH, aquele de percorrer o país através de concursos públicos, ficando, no máximo, dois ou três anos no emprego. Até não precisar mais daquilo e voltar, com toda a tranquilidade, para Minas.
Mas, como se diz por aí, a vida quase sempre nunca acontece, ao menos exatamente, da forma como a planejamos ou almejamos. Um obstáculo banal, extravagante, até mesmo anedótico para alguns, pôs fim ao seu projeto de vida nômade e relativamente livre. Simplesmente, a sua rinite, provocada pela alergia ao ar condicionado, foi se tornando cada vez mais forte. O que para a maioria era algo incompreensível, até mesmo frescura ou malandragem, para Maurício atormentava Maurício mais e mais, a cada mês que passava.
Não vou falar, ao menos agora, das batalhas de Maurício para conseguir um horário e um local, nos quais pudesse trabalhar isolado, sem estar exposto ao ar condicionado. Envolveu o Serviço Social, laudos e exames médicos, psicólogos, essas coisas de sempre, até que o seu direito ao bem-estar fosse formalmente reconhecido e a sua estranha alergia fosse levada mais a sério, embora ainda houvesse, e claro, os maledicentes de sempre, que punham tudo na conta da frescura ou da já conhecida arrogância de Maurício.
Na verdade, para muitos Maurício era como um estranho no ninho. Primeiro, porque passar num concurso público que tinha fama de viciado, de obscuro, vindo de longe, lá das Minas Gerais, sem quaisquer parentes ou conhecidos em minha terra. Segundo, porque logo logo se revelaria a sua contundente postura política, de militante de esquerda radical, com convivências, recorrentes e declaradas em alto e bom som, com todos aqueles movimentos de baderneiros que orbitavam em torno do PT – sem-terras, estudantes, negros, homossexuais, sindicalistas, com seus constantes e irritantes protestos pelas ruas da capital – é preciso registrar: estávamos em fins de governo de FHC, e o país estava à beira de uma explosão social.
Para a maioria dos que o conheciam, era um verdadeiro acinte, um sujeito tornar-se um servidor da elite do serviço público e se envolver com todas aquelas balbúrdias. Outros, mais condescendentes, consideravam Maurício apenas um exibicionista ou um ingênuo, mais um inocente útil nas mãos dos sempre bem articulados movimentos de esquerda. Claro que, no Judiciário, havia um que outro militante de esquerda, principalmente do PT, que inclusive já ocupara o governo de meu estado, em 94, com Vítor Buaiz. Mas eram militâncias discretas, mais institucionais, não daquela forma incendiária e provocante como Maurício agia. Entraremos em deliciosos e vibrantes detalhes, em breve.
Então, além de estrangeiro, esquerdista radical, filósofo e intelectual arrogante, o sujeito ainda se dava ao desplante de, até mesmo, pedir para que os colegas desligassem o ar condicionado, durante um certo tempo, para que ele não se sentisse tão mal. Maurício, sutil e educado, mas firme, dava a entender que, se eles tinham o direito ao conforto da refrigeração, ele tinha o mesmo direito a proteger a sua saúde do chamado elemento alérgeno, como diziam os médicos, no seu caso, o ar condicionado. Neste quesito, de desligar o ar, Maurício, nunca teve do que se queixar de seus colegas, afora um ou outro queixume ele reconhecia que eram compreensivos, até ode o calorão de minha cidade permitia.
De toda forma, a situação tornar-se-ia insustentável a médio prazo, para ambas as partes. Foi então que Maurício e o Serviço Social se postaram de forma mais contundente, e conseguiram que ele tivesse a sua sala em separado e, futuramente, o seu horário especial, trabalhando quatro horas sozinho, e duas horas em grupo. O que, para Maurício, ainda não era o ideal, essas meras duas horas faziam-lhe mal. Seguiu uma orientação da psicóloga, passou a usar máscara durante essas duas horas em outros momentos, como viagens, cinemas etc. Para alguns, tornou-se conhecido como o sujeito da máscara, o que, a princípio era meio constrangedor, mas que, aos poucos foi tirando de letra.
Passou a ter mais paciência com as curiosidades e estranhezas do público e dos advogados, passou, inclusive, a gostar de dar as suas explicações. Aquelas pessoas não se informavam de que, na China, no Japão, e em outros países, usar máscaras em público era coisa corriqueira, e isso muito antes do até hoje inexplicado Coronavírus. Ao menos neutralizava um pouco a desinformação e a tolice, que estranhavam e temiam todos aqueles que era diferentes, portadores de algum distúrbio qualquer, fosse moderado ou grave. Não deixava de ser uma espécie de militância política, cidadã.
*
Mas foi exatamente esse elemento externo, ou alérgeno, se se preferir, quem desviou radicalmente os rumos da estrada e do existir-no-mundo de Maurício. Entendeu que seria inviável continuar a estudar para concursos e mudar constantemente de emprego, usufruindo mais liberdade e sentindo menos ojeriza ao ambiente de trabalho. Precisava pensar em outro plano para sua vida, outra forma de se libertar da gaiola dourada do serviço público. Foi então que começou a pensar num comércio qualquer, um bar cultural, uma gráfica e editora, algo assim; nos primeiros sequer imaginava que acabaria se envolvendo com o promissor ramo da construção civil.
Mas a conclusão era óbvia – e ululante, né seu Nelson Rodrigues? Em qualquer concurso que passasse, em qualquer cidade, estado ou órgão que fosse trabalhar, enfrentaria o meso problema, as mesmas batalhas burocráticas e estressantes para poder se proteger da rinite, provocada pelo ar condicionado. Um pouco dos sintomas da dita cuja, para se ter uma ideia, será instrutivo. Nas crises mais graves, o primeiro sintoma era como se, ao se expor ao ar condicionado, alguém acendesse dois palitos de fósforo dentro de suas fossas nasais.
Inflamavam, Ardiam, queimavam, uma espécie de febre interna, que tirava o foco de qualquer outra coisa, derreava o restante do organismo. E prostrava o sujeito, em camas e sofás, durante boa parte do dia. Junto com isso, a inevitável dor de cabeça, o nariz entupido, a respiração difícil, que dificultava o sono, a atenção, a memória, o foco nas tarefas profissionais, que dizer, então, dos prazeres da escrita e da leitura. E aí, não havia jeito, tinha que ir ao médico e pedir atestados. Aquilo era um porre só.
Não havia como ficar a vida inteira naquela situação. Era preciso agir, construir a sua reserva para, no máximo em sete, dez anos, poder se licenciar, sem necessariamente pedir demissão, no caso de eventualidades. Voltar a ter a garra e a capacidade de adaptação, próprias de seu pai e de seus irmãos, aquela disposição e confiança em si mesmo, as quais ele perdera, ao ingressar no serviço público. Sim, em princípio poderia voltar para o comércio, mas algo mais voltado ao meio cultural, ou algo parecido, nada de atividades mecânicas, embrutecedoras, que visassem apenas compra e venda de mercadorias.
E, nesse interregno, o jeito seria levar a vida do jeito que desse, entre um tédio e outro, entre uma frustração e outra, entre uma angústia e outra. Mas também entre uma alegria e outra, entre uma viagem e outra, entre uma descoberta e outra. Aliás, em dez anos de Vitória, percebeu que conhecia as cidades e regiões do Espírito Santo muito mais do que a maioria dos capixabas. Simples de entender, a maioria das pessoas, quando chegavam a um ponto em podiam viajar com mais conforto e liberdade de movimentos, simplesmente buscavam, como robozinhos, os tais lugarezinhos famosos e turísticos. Primeiro em seu estado, depois no seu país, e, finalmente pelo mundo afora. Mas sempre em lugarezinhos turísticos, famosos e artificialmente charmosos, um charme fabricado exatamente para eles... turistas.
A não ser pelas louváveis exceções de sempre, a maioria das pessoas não tinha verdadeiras fomes e alegrias de viajantes e exploradores, qual seja, conhecer e explorar os encantos e nuances do território em que viviam, fossem ou não famosos, vendidos ou como pérolas, fossem ou não lugares de modinha. Enfim viajantes viajavam, exploradores exploravam, e turistas turistavam – Ó, não raros ignaros, turismo vem de tour, que em inglês significa passeio, volta, portanto, turistar é dar uma voltinha, de preferência por lugarezinhos famosos ou da moda.
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Lembrança ou confissão honesta; para quem ainda não leu os outros Mosaicos, esta expressão – Ó, não raros ignaros – foi copiada do futuro amigo de Maurício, o admirável escritor e filósofo Lázaro, de Ouro Preto, mas que vive transitando por Viçosa e Ponte Nova, frequentando o grupo que se formou em torno do filósofo espanhol González. Lázaro deita e rola com essa expressão no seu extenso e refinado livro Passa-Ouro.
E sua doce e combativa companheira Helena, ao fazer um balanço existencial, profissional, afetivo e erótico de seu estar-no-mundo, no seu divertido, erótico e dramático Não ia te dizer, escreveu bastante sobre o grupo de Viçosa e de González. Principalmente sobre seus festivos encontros no Bar do Odilon, em Ponte Nova, onde ela ainda mora; na verdade atualmente Helena divide seu tempo no seu apartamento na cidade, na casa de seus primos Ilídio e Marcelina, em Viçosa e na casa dos pais de seu Lázaro, claro, na dourada Ouro Preto.
uma militância triunfal, redentora
Parece que, de fato, tudo vem no momento certo. Como precisasse sair de seu isolamento e tédio, e também para cumprir, concretamente, sua tarefa de revolucionário, Maurício finalmente se tornou um militante de esquerda, perdendo suas resistências contra uma militância partidária institucional e aproximou-se rapidamente do PT. Na verdade, o impulso e a consolidação, nos primeiros meses, de sua militância de esquerda, não tiveram um caráter tão institucional ou partidário, houve muito de vivo e até de poético e transcendente, bem ao seu estilo.
A coisa se consumou, de fato, em Vila Velha, quando ele lá morou, por breves meses, e se encantou com uma palestra dada pelo líder do MST, João Pedro Stédile, no salão paroquial do santuário do Divino Espírito Santo, no centro da cidade.
Naquela noite foi enfim despertado o seu espírito combativo, o seu ardor de militante. Ainda mais que. Stédile havia sido convidado pelo PT de Vila Velha exatamente para divulgar a Marcha Popular pelo Brasil, da qual o MST era um dos principais articuladores. E Maurício se interessou, achou aquilo poético e mesmo pré-revolucionário. A Marcha aconteceu no ano de 2000. E, no Espírito Santo seriam duas colunas, uma vindo do Sul do estado e, outra, saindo do Norte, ambas se encontrando durante o Grito dos Excluídos.
O Grito era uma manifestação puxada pela ala autenticamente cristã da CNBB e pelas CEBs, e já consolidado no país pelas forças de esquerda e progressistas, que ocorria todo Sete de Setembro, como antítese às artificiais e patrioteiras comemorações da falsa Independência do Brasil.
Após a palestra, Maurício se apresentou a alguns militantes petistas de Vila Velha e se dispôs a participar da Marcha, ao menos nos finais de semana, e ajudar no que pudesse, principalmente na parte de escrita, que era o que gostava e sabia fazer de melhor. Foi acolhido, e apresentado, exatamente pela combativa Ana Rita Esgário, então vereadora da cidade, e futura senadora da República.
Encantou-se com a Marcha. Foi poética, combativa, camarada, e até mística. Afinal, parecia que, ali, a maioria era ligada à Igreja Católica. Numa manhã de sábado, por exemplo, houve um generoso lanche, oferecido pela comunidade de Mãe-Bá, próximo a Anchieta e Iriri. Organizou-se um amplo círculo, eram muitos marchantes, em torno das várias, fartas e coloridas mesas postas ao ar livre. E aí houve oração, música, palavras de combate, rituais, como colocar respeitosamente as bandeiras no chão, todas juntas, a simbolizar a união das entidades e militantes. Cantou-se o Hino Nacional, não como patriotice manipulada, mas com espírito nacionalista e combativo.
E, horas depois, achou ele simplesmente apoteótica a entrada da Marcha na famosa Guarapari. Claro que não foram aplaudidos no centro da cidade e nos bairros bonitinhos, mas foi uma verdadeira comunhão, uma epifania política, quando se dirigiam ao local – parece que no bairro Aeroporto – no qual os marchantes passariam a noite, para prosseguirem rumo a Vila Velha.
Para Maurício, o término da Marcha, com a chegada em Vila Velha, também foi marcante. Embora houvesse ocorrido numa quarta-feira à tarde, fez questão de ir ao encontro dos militantes, assim que saiu do trabalho. Convidou um colega do fórum, Leonel, para conhecer um pouco do Movimento, ele acabara de ingressar no curso de Filosofia, na UFES, em grande parte influenciado pelas conversas com Maurício.
Era um descendente de alemães, que se revelou arguto crítico das propostas da esquerda e que, aos poucos, se assumiu como ferrenho direitista, um típico funcionário público de classe média, mais um. Mas havia clima respeitoso para suas discordâncias e troca de ideias políticas e filosóficas. Era arguto, tinha um raciocínio cortante, Maurício gostava de ser confrontado por ele. Mas foram se afastando, não tanto em razão de diferenças políticas, e sim em função de posturas opostas perante o mundo e o ambiente de trabalho. Enquanto Leonel se integrava cada vez mais àquele ambiente, àquelas artimanhas e articulações, panelinhas e conformismos, intrigas e mediocridades, Maurício se atormentava cada vez mais com aquela vidinha.
*
Mas, com sua participação na Marcha Popular, restou em Maurício uma profunda admiração pelos militantes do MST, que, à época, eram autênticos, corajosos e preparados combatentes para uma eventual Revolução socialista no país.
Ficou fascinado, principalmente, pelo processo de formação política do Movimento, que transformava pessoas precarizadas de tudo, até de calçados, em cidadãos lúcidos, reflexivos e em incansáveis e confiantes lutadores pela transformação das obsoletas estruturas e instituições do Capitalismo. Quanta diferença de postura e de visão de mundo ente eles e as pessoas com quem Maurício convivia! Mas, no fundo, nada de misterioso ou surpreendente, o velho Marx já apontava que nossas posturas e opiniões são reflexos de nossa posição na incessante, embora cada vez mais bem disfarçada, luta de classes que move a história. E o que se poderia esperar de pessoas como aqueles servidores públicos privilegiados? A manutenção da ordem, claro.
Estava definitivamente selado o seu divórcio com aquele mundinho, o que não queria dizer que ele simplesmente iria pedir demissão. Nada disso. Apenas aprendia, a cada dia, a se conhecer melhor e a conviver com aquela ambiguidade de se ver e se assumir como um revolucionário e, ao mesmo tempo, trabalhar num dos aparatos de sustentação das classes dominantes, e de sua vassala e deslumbrada classe média, tal como aquelas pessoas do Judiciário, fossem servidores ou advogados. Era, sim, uma tremenda contradição, difícil de ser vivenciada, tolerada. Mas ainda não podia sair, a sua reserva era muito pequena.
Chegou a pensar numa solução temporária, ou intermediária. Pedir remoção para um Fórum do interior do estado, onde houvesse um assentamento já consolidado do MST, certamente no norte do estado, para os lados de São Mateus ou Nova Venécia. E morar, participar ativamente das iniciativas do assentamento em questão e do Movimento em geral. Mas teve receios de que não desse certo, de que não se integrasse de fato ao Movimento, não era ingênuo, sabia que havia disputas políticas e ideológicas fortíssimas no campo da esquerda, e o MST não estava isento disso, apesar de sua admirável imagem de coesão e lucidez.
O medo de Maurício procedia. Pois sabia que, na sua condição de filósofo e escritor, fatalmente questionaria e proporia muitas ideias e iniciativas que poderiam entrar em confronto direto com lideranças do Movimento. Sabia da intrincada rede de relações e articulações que havia em qualquer movimento de esquerda, sabia que, no fundo, aquilo que ocorria nos judiciários da vida era um padrão, embora, no caso da esquerda, os objetivos fossem o da confrontação e transformação, e não o da conservação das estruturas de poder. Temia se decepcionar com isso.
Não acreditou que, lá, no meio dos sem-terra poderia se encontrar consigo próprio, ao mesmo tempo em que se libertava daquele ambiente, que ele já via como sepulcral em sua vida. Na verdade, temia também que, até mesmo lá, no meio gente solidária, companheira e lúcida, a sua fobia social e o seu autismo moderado fizessem o mesmo estrago que faziam no seu dia a dia de servidor público. Anos depois, no tempo desta transtornada história, pensaria se aquela indecisão, ou receio, não teria sido um dos grandes erros de sua vida.
*
Então foi ficando no Fórum de Vitória, mas, como diriam as psicologias da vida, ressignificando (palavrinha enjoativa, essa) a sua vida, não mais se sentindo desalentado e deslocado. Pois acabou se integrando cada vez mais à militância de esquerda. Filiou-se ao PT de Vila Velha e se identificou com uma tendência mais combativa do Partido, a Articulação de Esquerda, liderada até hoje, em nível nacional, por Valter Pomar, e que no Espírito Santo era conduzida principalmente por Cláudio Vereza, deputado estadual, e Iriny Lopes, deputada federal. Essa tendência tentava, dentro de suas limitações, contrapor-se ao domínio da ala majoritária do Partido, a Articulação, comandada pelos figurões do PT como Lula, Zé Dirceu, José Genoíno e outros.
Na verdade o arguto Zé Dirceu é quem de fato comandava, quem era de fato o mentor intelectual e ideológico da Articulação. Lula era sua cria, tanto quanto fora cria do ABC. Não à toa o aparato judicial e jornalístico das classes dominantes primeiro destruiu Zé Dirceu, somente depois Dilma, Zé Genoíno e tantos outros, inclusive Lula. A Articulação se postava mais ao centro, e até mesmo mais à direita, era mais institucional e de menos mobilização popular; fortalecera-se, principalmente, depois que o grupo liderado por Zé Dirceu conseguiu aprovar o direito de qualquer filiado votar nas eleições internas do PT – para eleger suas direções municipais, estaduais e a nacional – sem que precisassem passar por intensos e esclarecedores cursos de formação política.
Essa formação era o que fazia o diferencial, como por exemplo, no caso daquele admirável despertar dos sem-terra para a luta política e social. Com a ausência dessa formação, os militantes eram arregimentados, cooptados e conduzidos para votar, ou seja, quem filiasse mais certamente teria mais votos – uma espécie de voto de cabresto da esquerda. Foi ali que o PT começou a deixar de ser uma promessa de autêntico partido de massas e revolucionário, para se transformar num partido cada vez mais institucional, parlamentar, eleitoreiro, afastado das bases e da autêntica mobilização política das massas.
E foi tudo isso que levou Maurício a sentir como necessária a sua militância na Articulação de Esquerda, como contribuição para que o Partido não caminhasse cada vez mais em direção ao centro, e quem sabe, até a direita. Na verdade, nas tendências de esquerda, já existia até uma expressão que indicava essa guinada, a chamada Direita Partidária do PT.
uma temporada solidária e transcendente
Pode-se dizer que aquele período, antes de se mudar para Vitória, foi uma época feliz (embora palavrinha perigosa e ilusória, essa) em sua vida, fez amizades com muitos companheiros da cidade, até rolaram uns casinhos com um ou outra companheira. Mas Maurício ainda não tinha readquirido a confiança, ou a maturidade, para uma vivência afetiva mais intensa, após suas perplexidades e perdas tanto com Leila quanto com Tâmara. Sentia uma espécie de culpa, melancolia e ressentimento em relação a ambas. Ainda lhe era por demais difícil aceitar que vivências tão intensas terminassem em desistências e distâncias, mutismos e indiferenças, sem um grama sequer de amizades reverências, cuidados mútuos. Por tudo isso, sentia que não estava preparado para levar um novo relacionamento a sério.
E, além disso, com aquele despertar para a militância autêntica e direta, Maurício como que se libertava da necessidade de ter uma presença próxima de si, individual, exclusiva; era como se o coletivo das marchas, protestos e militâncias em geral lhe bastassem como companhia ou presença afetiva. Talvez se ache um exagero uma simples caminhada, embora com os admiráveis sem-terra, proporcionarem tanta tranquilidade existencial a alguém. Mas, calma, aquela Marcha foi apenas o começo. Ainda veremos muitas peripécias de um Maurício vibrante e militante, até se esgotar o seu ardor e advir a sua decepção para com o PT.
Outra coisa. Voltava-se, com mais seriedade e regularidade para o difícil ato de escrever. Tarefa que, como se sabe, nos transporta para um tempo e um espaço diferente daqueles das outras pessoas, um recolhimento cotidiano que provoca um certo esquecimento das pessoas em nossas vidas, ou da necessidade de suas presenças em nós. Afinal, são tantas as vidas das quais temos que cuidar em nosso solitário – mas pleno de mágicos e gratificantes poderes – ato de escrever. E, por último, a descoberta do grupo de Viçosa.
*
Aqui entra já um pouco daquela ambiguidade ou dúvida, acerca de sua aproximação como grupo de González, da qual falei no meu Intróito. Penso que, de forma alguma, Maurício fez contato direto com Viçosa, de forma tão rápida, mas alguém estaria a lhe dizer muitas e muitas palavras acerca da singularidade daquelas pessoas. E essa pessoa era exatamente Eliza. É preciso relembrar que eles se adoravam, que eram verdadeiros primos-namorados, e que Eliza tivera a sua já atribulada história marcada pelo melancólico encontro, existencial e amoroso, exatamente com Ilídio, um dos principais articuladores na formação do Grupo de viçosa, junto Olavo e González – tal como competentemente já informado por Helena no Não ia te dizer.
Enfim, Maurício se tornava, a cada dia mais admirado e mais obcecado consigo mesmo, começa a idolatrar mais a si próprio, as suas idéias, o seu suposto talento literário (novidade) e, claro, o amplo grupo de de Viçosa. Esclarecendo que, poucos anos após a partida de Maurício para Vitória, a combativa Helena, sempre ladeada por U. e a namorada Marcelina, quisera porque quisera colocar fim àquele estúpido e excêntrico afastamento entre Eliza e Ilídio, que já durava mais de quinze anos. E começara, então, uma prudente mas firme aproximação com Eliza, indo repetidas vezes a Rio Pomba. Também está no Não ia te dizer.
E, claro, Eliza informava regularmente aquelas visitas a Maurício, junto com as novidades e estórias acerca do grupo, que Helena, U. e Marcelina lhe passavam. A Maurício parecia que aquelas pessoas lhe abririam horizontes extremamente diferentes, tanto no que dizia respeito às ideias revolucionárias e literárias, quanto nas questões afetivas e eróticas. As próprias figuras de U., Marcelina e Helena o encantaram, numa vez em que rapidamente os havia encontrado em casa de sua prima.
Mas pena que tinha que voltar a Vitória naquele mesmo dia. Se o contato com aquelas três pessoas de Viçosa houvesse sido mais estreito e intenso, certamente que Maurício teria se aproximado bem antes do grupo de González, e tudo poderia mudado na sua vida – a começar pelo fato de que, de forma alguma, envolver-se-ia de maneira tão intensa naquele relacionamento quase doentio e quase (?) fatal com a enigmática Mariane, uns cinco após sua chegada a Vitória.
As possibilidades femininas em Viçosa teriam sido bem mais atraentes, em termos de reverência, aprendizado, liberdade e cuidados mútuos, mais até mesmo do que suas vivências com Leila e Tâmara – tanto que as próprias Tâmara e Leila, depois de consumarem sua amizade, tomarão conhecimento e decidirão se aproximar do grupo de Viçosa, e se encantarão principalmente com as presenças femininas do grupo; isso, aliás, creio que já foi insinuado no primeiro Mosaicos e certamente será detalhado neste último. Ainda sobre as vivências afetivas de Maurício, claro que não há como comparar seus intensos e gratificantes momentos com Leila e Tâmara, com aqueles que serão vividos com Mariane, momentos esquisitos, no entender de Maurício, para dizer o mínimo.
O que não significa, de forma alguma, que com Mariane os momentos não tenham sido tão intensos e inventivos, inclusive bem mais diversificados, e duradouros – por óbvio, já que percorrerão a mesma estrada por nada mais nada menos do que dezessete anos. A propósito, estou ansioso para narrar suas muitas viagens e suas suficientes peripécias eróticas – mas sempre permeadas pela atmosfera doentia, de um relacionamento no qual a falta sempre se fará presente. Vai para você, essa bela antítese, doce Helena.
*
Mas vale registrar ao menos uma tentativa de vivência afetiva e erótica de Maurício, em Vila Velha. Foi com Ivone, ex-freira, oriunda do Paraná, professora da rede municipal e combativa militante da Articulação de Esquerda. Sentiram afinidades logo que se conheceram. Mas demoraram a se aproximar, um pouco por ele se sentir meio inibido com a sua condição de ex-freira e um pouco por tudo aquilo que já expus acima. De toda forma rolou em encontro.
Que não resultou em sexo, apenas um pouco de erotismo. Ela chegou a ficar de calcinha, estavam na casa de Ivone, numa tarde. Ela o convidara para uma visita e uma conversa séria. Ele logo entendeu do que se trataria a conversa. Sem rodeios, ela se declarou apaixonada por ele e que já sofria com a indiferença ou insensibilidade dele. Por isso, aquela visita e a conversa. Para Ivone saber o que, de fato, poderia esperar da parte dele.
Embora Maurício esperasse algo assim, não imaginara que ela seria tão direta e tão séria. Aquilo o lisonjeou mas também o assustou. Por tudo aquilo que já expus acima etc etc etc. Ele considerou que ela estragara tudo, ao levar a coisa para um lado tão sério, num tempo tão curto de convivência. Saiu pela tangente, disse que não esperava se envolver afetivamente com alguém, tão rápido, no Espírito Santo, fez breves menções aos seus relacionamentos frustrados, em Minas, para justificar suas reticências para com ela. Ela se decepcionou, mas entendeu a posição dele, e entendeu principalmente que não o atraía o suficiente. E o disse a ele.
— Sei que não sou exatamente o seu tipo, nem bonita o suficiente...
Era certo que Ivone não tinha um rosto particularmente formoso, ou de traços harmoniosos, e tinha o nariz um pouco alongado. Mas daí a dizer que não possuía um belo e atraente corpo ia uma grande distância. Maurício viu no seu queixume uma forma de sair pela tangente, de levar a vivência deles mais para o lado irreverente, sem tanta seriedade ou compromisso. Levantou-se e se postou por detrás dela, acariciando-lhes os cabelos. E pediu:
– Por favor, faça um coque na sua cabeça – depois que ela juntou seus negros e lisos cabelos num rápido e harmonioso penteado, ele continuou: – Agora, vai rapidinho buscar um batom vermelho e capriche nos lábios.
No que ela, entre divertida e animada, o fez, ele ainda comandou:
— Agora tire os óculos e se olhe no espelho...
Havia um, na parede bem em frente de Ivone, portanto, ela não precisou se levantar e ele pode continuar acariciando-a por detrás. Ela fez o que ele pedira, os dois se mirando demoradamente através do espelho. Ele finalmente perguntou:
— Companheira Ivone, você tem a coragem, ou a tolice de dizer que está vendo uma mulher sem atrativos aí à sua frente? – Ivone deu largo sorriso e corou um pouco.
— Não sabia que o companheiro também trabalha como consultor de beleza feminina... Com tão pouco, operou um verdadeiro milagre nesta professora tão sem-graça...
Foi o momento em que ele viu como oportuno, abaixou-se e lhe deu um prolongado beijo, enquanto descia as mãos pelo seu colo e já lhe pressionava um dos seios. Sabia que depois dos elogios e de sua investida, ela ficaria sem reação e esqueceria as mágoas por ele não levar tão a sério os seus sentimentos. E da mesa para o quarto dela foi um foi um pulo, embora com algumas paradas táticas, para se despirem e se agarrarem mais e mais.
Mas sem sexo entre Maurício e Ivone. Ela deixou que ele a despisse quase toda, ficando apenas de calcinha, calcinha de pureza, ela era virgem, estendida ao longo da cama. Mas Ivone não quis prosseguir, sequer permitindo-lhe sexo oral. Retomou o seu ar entre séria e magoada, como se a dizer silenciosamente a Maurício que ele não entendera nada do que ela propunha ou esperava. E ele caiu em si, e percebeu a sua imprudência e insensibilidade, logo ele que vivia buscando um afeto e um erotismo reverentes, transcendentes. E se comportara como um leviano, logo com uma ex-religiosa, alguém que, no mínimo, respirara muitas e muitas epifanias. Mas era tarde para consertar as coisas. Vestiram e se despediram amigavelmente.
E amigavelmente continuaram a se ver, continuaram militando juntos, em ocasiões diversas como veremos. Até mesmo foram acolhidos num famoso Convento do Rio de Janeiro, como que por uma ironia do Destino, por ocasião do agitado Tribunal da Dívida Externa. Mas jamais houvera, entre eles, a atmosfera própria para uma nova tentativa. Nesse episódio, Maurício se deu conta de como Leila e Tâmara ainda estavam presentes em sua vida. E se sentiu meio canalha, tal como o fora com Taizinha, a namoradinha de Jacinto Galho Aquino Alto, em Belo Horizonte.
E se sentiu tão desamparado, e com a mesma sensação de perda, quando deixara a doce e ambarina Tâmara para trás, no seu transcendente refúgio de Casa Branca, nas proximidades de Belo Horizonte – tanto a ingênua Taizinha quanto Tâmara estão no primeiro Mosaicos. E algo lhe dizia que perdera, com Ivone, a mesma tábua de salvação que perdera com Tâmara. E ele jamais se esqueceria da figura de Ivone. Já Leila e Tâmara eram outras histórias, outros quinhentos, elas, de um jeito ou de outro, sempre estariam presentes em seu existir no mundo, inclusive fazendo parte do grupo de Viçosa, como veremos lá à frente. De toda forma, Maurício envia um carinhoso, apertado e nostálgico abraço à professora, companheira e quase-namorada Ivone, onde quer que ela esteja.
*
Mas, com ou sem enlaces afetivos duradouros, integrou-se bastante ao PT de Vila Velha; pena que o tempo gasto em transporte acabou obrigando-o a se mudar para Vitória. Mas, antes de ir para a capital, decidiu morar por uns meses em Ponta da Fruta, balneário despojado e tranquilo do município de Vila Velha. Queria experimentar ao menos um pouco do transcendente gostinho de morar à beira-mar, já que não tivera coragem de se mudar para o tranquilo interior. Foi também um mágico período em sua vida, pois, à já gratificante e redentora militância política, juntou-se a plenitude de celebrar e testemunhar a imensidão do mar. Parecia que flutuava, quando andava, caminhava e nadava pelas praias.
E, quando o Sol e a Lua, em suas visitas à Terra, brotando, adventando lá dos confins do oceano, boiando, como se carregados pelas próprias e infinitas águas e pelos fortes ventos marítimos, aí então era uma festa para a alma, melhor, era uma autêntica Epifania, e quase todos os dias. Através dessa sua maior abertura para o Transcendente e para as epifanias, percebe-se que Maurício já tinha sido um pouco tocado pelos conceitos do espanhol González, através das conversas com a prima Eliza.
E, em falar em Epifania, Maurício vivenciou uma de caráter realmente religioso e, pode-se dizer, também existencial. Foi durante a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, padroeira dos pescadores. Ele morava na parte alta do balneário – o que, aliás, era o que enriquecia deveras as suas epifanias com o sol, a lua, o mar e os ventos.
*
Num domingo à tarde, ele ainda tomando o seu vinho – à época ainda bebia um tantinho até bom – ele foi simplesmente surpresado por uma longa, festiva e sonora procissão, a percorrer uma distância razoável praia afora. Não estava sabendo de nada, não criara muitas amizades no lugarejo, não se integrara – grande novidade, para um autista, mesmo moderado – e o inesperado acontecimento verdadeiramente deixou-o transtornado, mas no bom sentido. No sentido poético, transcendente. Era completamente diferente de tudo o que já vira. Acabou até fazendo um poema para o momento, mas isso vem daqui a pouco.
Havia um potente carro de som, com as falas de sempre, como se fosse algum protesto da esquerda. Só que, ali, falas religiosas, por óbvio, alternando-se com cânticos e músicas, a maioria do padre Marcelo Rossi, claro – a Renovação Carismática já se espalhara, João Paulo II, com seu carisma marqueteiro, já conseguira sufocar, em grande medida, a Teologia da Libertação e a ala progressista da Igreja Católica.
E, lá no mar, próximo à praia, muitos e muitos barcos, enfeitados com bandeiras e bandeirolas, a soltar bolas de soprar para coloriam o ar do mar, e a soltar, nas águas mais próximas da praia, gentes para a procissão. Era bonito e diferente demais da conta para um mineiro, uai. Aquilo merecia mais vinho e até palavras poéticas, uai, sô. E a coisa veio, o poema brotou fácil – inesperado e pulsante como a própria celebração lá embaixo. Mas não sem o inevitável tom crítico, a apontar contradições e ambiguidades na celebração, mas coisa leve, fez o que pode para não deixar a sua a militância política invadir a Epifania, tomar o lugar de sua militância do Sagrado. Ei-la, a poética fala de Maurício na sagrada e consagrada tarde:
epifania navegante
houve hoje graças e louvores ao mar... ao mar... !
ouvia-se o escavar de foguetes - de tarde, de tarde
parecia que após longo longo tempo
estavam a se reencontrar com o ar
vento e foguetório faziam e percorriam
uma mesma estrada marítima e estralejante
de tarde, de tarde, as cheias barcas
desatracaram multidões
bandeirolas azuis e brancas
engolfaram águas
de deliciosa malícia mar afora
bolas depois de colorido soprar
desprendiam-se das cordas e boiavam
redondos arcos e beijos na íris do mar
procissantes andavam e aguardavam na réstia de areia
muitos jogando na tarde globalizada e moderna
uns punhados de areia e uns punhos na cara:
um resto de memórias de tempos verdadeiramente navegantes
no mar e no ar de ondas rádio-carismáticas
irrompia padre marcelo rossi - voz e cd, verão e enigma
espalhando num templo de águas e peles, areias e seios
canções que quereriam conservar a memória da muda
senhora
a tudo se assistia da varanda
entorpecida, de tudo se admirava a alvoroçada alma
nossa
ponta da fruta, fevereiro 99
Maurício se encantou, tanto com a Epifania como com o seu poema acerca dela. Os versos lhe pareceram uma segunda Epifania, derivada da primeira. Como se o Mistério houvesse dado a ele a tarefa de, além de testemunhar e celebrar, também registrar a aparição do Sagrado nas areias e águas de Ponta da Fruta. E tanto gostou de tudo, que fez questão de se apresentar ao espanhol González e tudo lhe narrar, por telefone. Naquele breve encontro em Rio Pomba, Helena havia lhe passado vários números de telefone, dizendo que ligasse quando quisesse, para ele e o grupo de Viçosa se conhecerem melhor. E também enviou o poema, para que González o mostrasse ao grupo, informando de que se tratava. E a poética fala de Maurício atraiu a atenção de todos, praticamente selando sua condição de integrante do singular grupo literário e revolucionário, mesmo que à distância.
Apesar desse primeiro contato por telefone, e dessa primeira vivência transcendente em comum – ofertadas pela narrativa e pelo poema de Maurício – ele não avançou mais; pelo que sei Maurício ainda não se sentiu atraído para uma visita iminente a Viçosa. No segundo Mosaicos, naquela conversa com Nildo, em Feu Rosa, vimos que essa visita ainda demorou alguns anos, e certamente ocorreu depois que conheceu Mariane. Veremos.
O que o levou a adiar o estreitamento da amizade, e a visita a Viçosa, foi um resto de resistência de Maurício às ideias de González. Ainda tinha não poucas dúvidas acerca da viabilidade daquelas ideias políticas e revolucionárias propostas pelo MPO, expostas, de maneira formal e escrita, exatamente por Helena no seu Parar o Ocidente; Helena já tinha oferecido um exemplar do livro a Eliza e pedira a ela que o emprestasse ao seu primo. Se ele gostasse, Helena lhe enviaria também um exemplar. Claro que, como filósofo, Maurício achara tudo muito interessante, aquela singular fusão entre Heidegger e Marx. Já tinha lido alguma coisa nos escritos do filósofo italiano Gianni Vattimo, mas não se interessara muito, achara a coisa meio delirante, apenas mais uma tentativa de revisionismo do autêntico marxismo.
E, além de tudo, estava mergulhado na concretude da ação militante, realista, convivia com pessoas que viam como iminente uma situação pré-revolucionária no país e, quiçá, no Ocidente inteiro. Por mais que respeitasse Heidegger, não via no que a sua filosofia, para ele até então obscura e meio delirante, pudesse contribuir efetivamente para a inevitável e necessária superação do Capitalismo. Por tudo é que fora a adiada a sua adesão incondicional às propostas de González e do MPO.
Mas ao menos a semente fora lançada dentro dele, sua consciência volta e meia se debruçava um pouco sobre a necessidade da transcendência no processo revolucionário, volta e meia duvidava da possibilidade de a militância revolucionária e a ciência marxista dar conta, sozinhas, da superação do Capitalismo. Mas, como veremos, ainda haveria um longo e vibrante caminho para Maurício percorrer, como militante petista, antes de aderir completa e entusiasticamente à Revolução Planetária Transcendente, proposta por González, e cujos fundamentos foram explicitados por Helena no já referido Parar o Ocidente.
nossos abortos de cada dia
Mas foi belo tempo, a sua permanência em Ponta da Fruta. Porém, estava se tornando inviável, morava muito longe de Vitória, “eram quatro condução, duas pra ir, duas pra voltar”, lembrando o nosso Zé Geraldo, também oriundo lá da Zona da Mata de Minas, mais especificamente de Rodeiro: um ônibus, que vinha de Guarapari, e os deixava na estação das barcas de Paul e, dali, seguiam para o atracadouro das barcas na Beira-Mar, já em Vitória. Até que curtia a demorada viagem em dupla modalidade, mas, quanto às barcas, gostava mais quando morava em Vila Velha e usava a estação da Prainha.
Por lá, a travessia das águas da Baía de Vitória, além de bem mais demorada, cerca de trinta a quarenta minutos, era também mais colorida, diversificada – mesmo porque a distância percorrida era maior, óbvio. Passavam debaixo da famosa e graciosa Terceira Ponte iam costeando a Enseada do Suá, o clube Náutico, a já citada Beira-Mar, saudavam o imponente Penedo e, por fim, desembarcavam na mesma estação que as barcas de Paul, no começo da Beira-Mar.
Para Maurício, havia somente um trecho desagradável, a passagem pelas proximidades da Penitenciária Pedra d’Água, do outro lado da Ilha da Fumaça. O edifício era até elegante, charmoso, amplo, plantado numa bela colina, bem no meio das águas. Ninguém pensaria tratar-se de uma prisão, o tal negócio: quem vê cara, não vê coração. E a gente sabe o que são as asquerosas prisões deste país. E a Maurício, a prisão lembrava, todos os dias, que ele também fazia parte daquele sistema de vigilância, repressão e punição e, ao mesmo tempo, participava do enfrentamento àquele sistema.
E aí vinha aquela ladainha ideológica de sempre. Até onde o tal Capetalismo era o causador, ou detonador, da tal maldade humana? A sua superação pelo Socialismo de fato eliminaria aberrações como assassinatos, estupros, violências e barbáries diversas?
A complexa questão parecia que extrapolava os estreitos impostos pela marxismo e pela Revolução. Era inevitável recorrer a outros filósofos, e Maurício recorria, naquele caso, principalmente a Sartre. Até onde a coisa era um pouco congênita, genética e até onde era própria da inquestionável liberdade humana, que, para Sartre, era uma condição existencial e ontológica nossa, da qual não podíamos fugir.
Até onde seria legítimo, ontologicamente falando, construir-se como bom ou ruim, como pessoa lúcida e generosa ou como livre ator, a agir acima da moral, dos costumes, da comunidade e mesmo da Transcendência e da Sacralidade? Até onde o ente humano podia e conseguia existir autenticamente: renunciando à sua liberdade de ser mau, canalha, brutal, em nome da plenitude do coletivo, ou exercendo a sua maldita e maligna liberdade se tornar uma besta – uma besta para os nossos padrões, claro, não para os padrões da besta em questão?
Parecia tema inútil, coisa de Filosofia da Idade Média, tipo o sexo dos anjos, mas para Maurício era séria questão, aquela da tal maldade humana, e que vez por outra o incomodava, manchava suas poéticas travessias. Claro, tinha muito a ver com a ambiguidade de ser, ao mesmo tempo, como revolucionário e burocrata do sistema de punição.
Mas acabava por deixar aquilo de lado, era coisa para o futuro e o mundo pós-Revolução, pós-Capetalismo. E aqueles dilemas e incômodos acabaram proporcionando-lhe um interessante poema, no qual falava dessas contradições e absurdos do mundo presente, tais como encarcerar pessoas como se animas fossem, ou, vendo o outro lado da moeda, tais como ser vítima de brutalidades e violências criminosas.
Enfim, o mundo e a história eram pura e constante contradição e era preciso saber navegar em meio a ela, sem romantismos e idealismos ou desistências e niilismos, descrenças.
E as travessias por ali eram tão relaxantes e plenas de frescor, tanto na ida quanto na volta, que, por si sós, já mereciam um poema. Maurício juntou então as duas coisas numa só fala – antes daquele poema de Ponta da Fruta, claro:
bom dia, cidade
o alto azul aninha o sol
o sol adoça a terra
os ventos beijam os vivos
os vivos convidam seus mortos
estamos pacíficos
aqui na barca do atlântico
o sol nos doura desde lá de fora
o olhar apalpamos a pele azul
deste espetacular espelho espacial
que nos protege e nos limita na órbita
mas há um confronto de tempos
nas ruas
a pressa de nossa palhaça
peça de cada dia:
perturba o nosso espaço
tropeçamos em nossos passos
automóveis atropelam o nosso pasmo
quereríamos era atravessar
e acariciar a cidade das gentes
a que temos fecundado
em meio à noite dos tempos
e que abortamos na manhã de cada dia
Eliza
ela, enfim
viver é tão excessivo.
é quase inacreditável como as pessoas não conseguem se dar conta dessa azáfama que as envolve e as empurra, azáfama tão inútil e quase risível se não fosse trágica. um trágico tráfico de almas e de consciências que o Absurdo transporta para o Nada dia a dia minuto a minuto segundo a segundo.
eu me entristeço. eu me canso. tão repetitivo e abusivo espetáculo.
mereceríamos um enredo melhor mesmo a maior de parte nós não sendo profunda sensível e inteligente o suficiente.
*
mas ainda assim. eu apareço. eu renasço. desnudada de minha pele cansada e rançosa.
abro-me e broto de meus tormentos. já não me aborto, absorta por surtos e sustos, sugada num esgoto existencial até então.
e agradeço-lhes.
reapareço de fato no mundo. ao entrar no mundo deles ao entrar no carro de González, junto com Olavo, Helena e Lázaro.
e para surpresa geral e mesmo minha mal adentro e abro do nada a boca para citar o de Profundis – não o salmo bíblico mas aquele de Perto do Coração Selvagem, de Clarice. visceral tristeza em puro desespero:
“De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes dentro de mim? Por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, ajudai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meu dedos e encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não saberei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? Que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lagrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxilio que eu não tenho pecados, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada,das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós”.
súbita fiz brotar e gotejar essas implacáveis palavras em meio ao evanescente corpo do silêncio, que ainda viajava no carro nestes primeiros quilômetros da estrada de Rio Pomba a Juiz de Fora. essas palavras que sabia que lhes tocariam o coração a alma ou a consciência como gostam de dizer os filósofos inclusive o meu inesquecido Ilídio. foi um pouco por isso que as pus aqui no lugar do silêncio que se esvaiu e educadamente saiu do carro – em silêncio, claro.
para fazer-lhes um agrado ou melhor como forma de agradecer-lhes por me acolherem sem mais reticências em suas histórias e existências. se bem que isso de reticências e resistências às pessoas diz muito mais respeito a mim do que a eles. triste isso de ter forte autismo forte medo dos outros medo do mundo medo do viver. ainda bem que também assim o meu pra sempre Ilídio, amém!
mas ainda assim viver é excessivo cansativo exigente. espero que daqui pra a frente o seja menos, em companhia deles, dele.
*
mas não foi tão somente como um agradeço, e como semente de futuras vivências, que plantei entre nós o lacerante de Profundis de Clarice. foi também e muito para mim mesma pois acho que se não eu falasse ou melhor se eu não rezasse algo assim eu acabaria por chorar. e então molharia com ainda mais tristeza este para nós lutuoso momento pelo suicídio de Maurício. estas caprichosas coincidências da vida. Maurício é distante parente de minha mãe e logo o seu suicídio está sendo aquilo que me carrega para reencontrar Ilídio depois de doze anos.
sim eu choraria acharão estranho isso. estranhem isso mas eu choraria pelo simples fato de enfim sair de mim de minha quase apodrecida vida e encontrá-los de fato. eles e elas que compõem o mundo em que Ilídio vive com os quais Ilídio constrói o seu mundo. pouco tempo depois de Helena em minha vida aqui no Pomba eu parei em definitivo com os tais medicamentos psicotrópicos atualmente tomo somente clonazepan impossível dormir sem ao menos uma cretina droga.
mas é a muito custo que me mantenho sem as outras cretinas drogas. muito desmorono às vezes por qualquer emoção mais forte e às vezes caio e desmorono fundo mesmo.
atribuo-me fantasmagorias e angústias atribulo-me choro confundo-me pergunto choro cascatas tais quais as que Helena, Lázaro, Ilídio já confessaram em seus escritos. e esta viagem rumo a Vitória e rumo a Ilídio traz com certeza fortíssima emoção por isso rezei com Clarice e para eles aqui no carro e principalmente rezei para Helena meu anjo da guarda aliás todos eles serão meus anjos da guarda daqui pra frente. de Profundis foi certamente um remédio menos danoso, e poético, mesmo que desesperadamente poético. ah, ainda teremos muito tempo para falar de de Profundis, aguardem minhas melancolias e desvarios.
*
e senti que os meus companheiros de viagem sentiram o golpe sentiram essa espécie de confissão de minha extrema instabilidade. agora já sabem o que os espera já sabem daquela que deles espera a salvação. Helena e Lázaro vendo e ouvindo e Olavo e González apenas ouvindo – pois sim senti, emanou deles admiração mas também estranheza.
Eliza, a estranha, eis que aqui me vos apresento, a estranha mulher que constrói esta estranha história e estrada de dor-amor com Ilídio mulher e história que tanto os incomodaram e admiraram, mulher que já se apresenta já aparece a eles com estranha fala e estranha voz. mas das quais sei que muito gostaram e claro admiraram-se de minha prodigiosa memória a minha capacidade em citar com tanta serenidade e exatidão um trecho tão longo.
e já sei que marquei ponto com todos eles ao lhes citar Clarice embora Helena já tenha informado a todos que vivo mergulhada em livros tanto quanto eles. no meu caso melhor seria dizer que vivo escondida em livros.
mas sei que são tão estranhos quanto eu e Ilídio. o que acontece é que a nossa estranheza é um pouco mais intensa que a deles e a minha ainda mais intensa do que a de Ilídio pois afastei-me muito de tudo quando assumi meu autismo meus medos meu desdém e indiferença pelos outros.
principalmente depois que entendi melhor meus transtornos e decidi lutar por uma precária e precoce aposentadoria por invalidez – trabalhei no INSS por apenas doze anos mas como consegui passar num excelente concurso sobra-me mais do que o suficiente para viver. tanto que acho que eu e Helena temos uma renda parecida.
Helena apareceu em minha cidade minha casa minha vida –Lula lá de novo, apesar de tudo, apesar da desprezível ala direita do PT – quase exatamente um ano atrás. Helena, no mais das vezes em companhia de U. e de minha menina-amiga Marcelina, entrou em minha vida e me tirou de minha paralisia e me livrou das garras da psiquiatria e da psicologia.
minha nossa eu já não aguentava mais me sentir uma marionete manipulada por agressivas medicações de psiquiatras e reflexivas e pedantes palavras de psicólogas. eu já não suportava mais ter que viver por procuração como se eu não pudesse caminhar sem essas patéticas muletas psíquicas e psiquiátricas. mas Helena U. e Marcelina conseguiram principalmente a proeza de por fim à minha estupidez e de vez por todas acabar com a mágoa que por longos doze anos senti em relação a Ilídio.
*
viver é tão excessivo, cansativo e exigente.
preciso não me esquecer, antes que me empolgue perigosamente com isso de tentar viver novamente no meio do mundo e das pessoas. mesmo que seja no meio deles, os amigos-irmãos de Ilídio e por extensão também meus.
sim enfim falo com eles e a eles me junto.
só pra relembrar: no seu Não ia te dizer Helena narra como tudo começou ou melhor como tudo recomeçou para mim, a partir do instante em que Ilídio e Marcelina lhe contaram tintin por tintim a minha estória ou quase estória com Ilídio. e quando então Helena com ajuda de Marcelina e U. assume a tarefa de pôr um fim em todo esse distanciamento.
e claro a a minha quase sósia Helena também fala lá no Não ia... da causa e do contexto de todo esse absurdo e sofrido afastamento entre eu e Ilídio. a quem tanto aguardei e agora por quem anseio ainda mais,agora que faltam tão poucas horas depois de tão longos dezessete anos.
Eliza e a beleza
tanta coisa bonita deixamos no tempo atrás de nós e no mundo em volta de nós. há um rastro de dor e destruição em tudo que fizemos e fazemos neste mundo e nesta vida mas mesmo assim ela a beleza, minha tristonha Eliza, não soçobra sobra sobranceira e sobrevivente: a beleza, estranha Eliza, a beleza de estarmos aqui no estranho do mundo de fazermos a vida acontecer e de deixarmos o próprio mundo mais colorido embora também mais imundo.
a beleza está em tudo e em tantas gentes mas eu a encontro principalmente em filmes e em palavras escritas. eu a encontrava em especial nos cinemas antigos do Pomba e de Viçosa quando eles ainda existiam de verdade e não como hoje: sufocantes hostis e fascistas salas de shoppings estes templos de patética sedução e que felizmente eu tão pouco frequentei em Beagá tampouco aqui no Pomba e Juiz de Fora. eu e Ilídio vimos tanta coisa interessante lá no cine Odhéon e no cine Brasil em Viçosa.
tenho tanto o que falar de tantos filmes que me marcaram. e são muitos mesmo, tantos quantos os livros que nos marcam e vou falar de alguns deles para meus amigos meus anjos da guarda. mesmo porque Helena U. e Marcelina já devem ter falado a González e Olavo dessa minha predileção e singular capacidade – palavras dela – de ver tantas nuanças e complexidades nos filmes de que que gosto. e sei que daqui a pouco ela irá puxar a minha língua para esse assunto. claro que não falo nem leio esses filmes como uma crítica ou com o tom de uma especialista. Deus me livre e guarde, falo ditada pelo tom de meu coração e pela lucidez e intuição da consciência.
*
quanto à beleza ofertada pelas palavras atualmente as de Lázaro são as minhas preferidas. a festa que ele faz com elas. sou apaixonada pelo que escreve e por sua combativa e crente pessoa. uma eterna festa de reverência e plenitude, são essas as palavras que mais desejo para minha amiga sósia e redentora Helena, em suas travessias com Lázaro. uma Helena tão mais nobre que a sua famosa homônima de Tróia pelo menos para mim. e para Lázaro com certeza.
graças a Deus e a Helena eu os encontrei esses singulares amigos e amigas de Viçosa Ouro Preto Itamonte. até de terras de Espanha veio esse admirável filósofo que nos conduz com sua modéstia e luz. foi Helena quem me salvou de mim mesma com sua obcecada empatia para comigo e com Ilídio. e para com nossa até então estranha estória. Helena com suas obcecadas visitas a Rio Pomba sempre em companhia de U. e Marcelina. até que me convenceu a reencontrar Ilídio.
o estranho e altivo U. e Marcelina sua estuante estudante das palavras e do amor – como ele mesmo diz – sua namorada que quase veio a ser minha cunhadinha e tão devotamente católica quanto eu. que engraçado ela não parecia que se tornaria assim faceira e inventiva quando a conheci no breve tempo em que eu e Ilídio muitos anos atrás lá em Viçosa. era recatada vivia só para os pais e, claro, para seu irmão por quem sempre será uma apaixonada.
ah há sim ainda muita melancolia e saudade do que não aconteceu mas agora apenas redentora festa será. assim o esperamos assim o será estou aos poucos aprendendo a me tornar forte e confiante como minha sósia Helena. embora com meus nada leves transtornos tão iguais aos de Ilídio. nisto de transtornos eu e ele somos de fato almas gêmeas.
e com Helena, U. e Marcelina finalmente saí de mim mesmo e de minhas mágoas com Ilídio eu o perdoei por ter se ido sem mais de minha vida de nossas vidas. tantas inúteis migalhas de mágoas guardamos. tanto desperdício de mim mesma. agora o vejo. vejo a minha feiíssima falha por não ter ido até ele ou a ele sinalizado. ah se o soubesse. na verdade como se não o houvesse sabido sempre sempre:
Ilídio, idílico e terno menino, eterno poeta-namorado.
assim como há aquelas palavras que guardo somente para Helena há essas palavras que sempre guardarei para ele mesmo sabendo que muitas e milhares de outras estão e estarão a brotar de nossos bosques e bambuzais verde-claros mas essas serão as sempre principais de mim para ele: Ilídio, idílico e terno menino, eterno poeta-namorado.
eu me sinto tão bem e tão libertada e libertária por poder pensar e falar com e como minhas novas amigas e amigos. eu viva, viva eu!
o tempo furioso apressado a ávida vida a árdua dor a chamante e chamejante beleza. tudo ao mesmo tempo nas pessoas, entre as pessoas e isso no mundo inteiro em tantos lugares ocorrendo com tantas pessoas às vezes corroendo-lhes às vezes cantarolando-lhes. é de admirar é de assustar sou fissurada nessa imensidão de vidas e mundos assim escorrendo do nada para o nada em mesmíssimos segundos e instantes.
aliás, Lázaro diz ricas palavras sobre isso ao final de seu para mim riquíssimo Passa-Ouro. e extensíssimo, claro.
vou conversar isso com Helena e ele assim que puder lá em Vitória e claro também com González. sei que eles serão frontalmente contra a minha percepção de que a vida é excessiva, por demais cansativa, exigente. mas deve ser por isso mesmo que quero conversar com eles sobre, para que me ajudem a me curar de minha longa e tristonha perplexidade.
e que alegria estar com ela e Lázaro nesta estranha viagem até Vitória. a pois, a poesia depois da longa estrada, abrir as comportas do tão represado poema de nosso existir: quanto tempo e quilometragem ainda faltam para enfim eu e Ilídio em vitórias e merecidos êxtases? e como será isso de eu virgem há tanto me guardando para o Único? mas isso não me aflige isso de eu virgem de amores, no leito e no peito de Ilídio. afinal parece que eu e ele sempre estivemos casados e matrimoniados desde os começos de tempos como diz Amelinha meu amor nosso amor estava escrito nas estrelas!
Ilídio, idílico e terno menino, eterno poeta-namorado.
*
agora menos, tristonha Eliza, menos. contenha-se alimente-se menos de futuros e promessas. é tudo sempre incerto e cansativo para ti, espere ao menos os braços e a presença de Ilídio se confirmarem. te confirmarem.
absorva-se em outra coisa viaje de fato ao lado deles.
sim, isso, esse o assunto. a beleza que vem das imagens. o cinema os filmes a amorosa e expectante vibração na silenciosa escurecida sala. eu escondida dentro dela a apaixonada identificação com tantas estórias e tantos mundos e com tantos lugares do mundo. como eu adorava aquilo aquelas noites. ainda mais nas não poucas vezes em que eu e Ilídio fomos juntos lá nos cinemas de Viçosa eu adorava tanto o cine Odhéon na praça Silviano Brandão quanto o cine Brasil na pracinha do Rosário. na mesma praça aonde Ilídio e Marcelina ouviram a estória de Elsie, Robert e Simon que eles contaram tão bonitamente no Neve. estória tão tristemente parecida com a minha e a de Ilídio.
ah como fomos tontos por tantos tão poucos encontros. Ilídio meu edifício eu seu edifício eu tão difícil para acolhê-lo em meus aposentos e tão difícil para aceitar adentrar os dele – eu dentro dele ele dentro de mim. mas para quando enfim o estarmos nos amando após anos tantos e tristonhos. lá em Vitória, sim a vitória enfim. isso de brincar com as palavras estou aprendendo com Helena U. Marcelina e claro com Ilídio. mas principalmente com Lázaro o mais prolífico combativo e vibrante de todos.
a epifania das imagens
ah sim o cinema os filmes. conversar com eles e não comigo mesma com meus fantasmas e remorsos a me remoerem.
demorei-me tanto em mim depois do de Profundis que a sempre serena Helena o percebeu e mais uma vez me tirou de dentro de minha casca minha casa minha vida e meus protetores e abstratos aposentos. mas o fez com a delicadeza e o cuidar de sempre. antes mesmo de chegarmos em Juiz de Fora ela começa a comentar sobre cinema. Como uma indireta ou uma suave censura para eu me voltar para eles. E falando de algo de que gosto tanto. e então não perco tempo.
e falo de O arquipélago sagrado. com este filme quero comover a todos eles mas principalmente sondar e comover a González. na verdade não é filme mas um belíssimo documentário. conta a história de um antigo mosteiro nas Ilhas Solovetsky. acho que serviu como campo de concentração durante os anos de Stalin à frente da União Soviética. mas a atmosfera não tem viés político muito intenso. sem a intenção de condenação cretina do socialismo utilizando como pretexto uma abordagem do Transcendente.
uma vez Helena me disse que Lázaro lhe contou que González esteve na União Soviética. e provavelmente deve ter visitado o mosteiro e as Ilhas Solovetsky que já deviam ser famosas ou faladas. uma visita tanto no aspecto profissional, como jornalista, no aspecto político como reolucionário e também no aspescto transcendente, como filósofo e peregrino do mundo no mundo. eu vi O Arquipélago há um bom tempo já então dos detalhes me esqueço. ainda assim tudo se casa se encaixa e a todos encanta. ao espanhol peregrino do mundo principalmente.
lanço a minha isca melhor dizendo minhas entusiasmadas palavras acerca do terno-denso documentário. a sondar se de fato González esteve lá. e grata e vibrante eu o ouço confirmar. noto como ele se sente igualmente grato e vibrante por alguém falar de um lugar para ele tão marcante .é como se minhas palavras e minha leitura de O Arquipélago lhe ofertassem a oportunidade de voltar até lá.
e então trocamos vivências as dele concretas e nostálgicas, as minhas artísticas e sonhadoras. o branco da neve e das espumas do mar. com o silêncio do transcendente permeando. a arquitetura da construções tipicamente russa para mim uma essa coisa meio gótica meio barroca. com o transcendente silêncio tudo permeando. as orações as falas pausadas e reverentes dos monges. até mesmo em meio a elas o silêncio permeando. como se também orando ou falando.
tudo como se conversando entre si: o branco da neve o vento as árvores os pássaros a água os monges as falas. deixando de lado a questão política a questão de ter servido como campo de concentração para os incidentes da revolução burocrática stalinista.
pena que eu não me lembre exatamente do enredo ou da sequência. o que lembro é a atmosfera, a Presença. a atmosfera da Presença. a presença do Sagrado. e não apenas no mosteiro mas por todas as Ilhas Solovetsky. e por incrível que pareça González ainda não tem conhecimento do filme. não é ainda ligado a todas essas modernidades de cinema via internet.
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