
P a s s e i o s
J a d e
N e v e
O d i f í c i l M a u r í c i o
MOSAICOS
ÍNDICE
Passeios. 14
Jade. 39
Neve. 78
A mais estranha estória. 79
Os gritos 81
Os tiros 83
Robert, o solitário. 86
Elsie, a doce. 89
Robert e Elsie. 91
Eros 94
Ternuras 99
Epifanias 103
Sangrias 106
Simon, sem Elsie. 109
Os primeiros tiros 132
Um início, um fim.. 139
Um fim, um início. 143
Heróis 149
A história da estória. 151
Um céu de palavras 172
Lágrimas de Elsie e Helena. 181
Eliza e Ilídio. 190
Tchauzinho. 212
O flutuante Maurício, Minas. 213
01 – Zona da Mata, um oriundi relapso. 214
02 – Ipatinga, os leitos com Leila. 223
03 – Entre epifanias e putarias 226
04 – Os grotescos momentos 232
05 – As inventivas e reverentes transas 235
06 – Todo luto tudo transtorna. 243
07 – Sabará, ouro amoroso, chuva de gozo. 251
08 – Ouro Branco, janela do Sagrado e de Eros 255
09 – As rachaduras aparecem.. 258
10 – A noite terminal 266
11 – O dia final 270
12 – Um périplo pelo Transcendente. 291
13 – Um périplo pelos ermos 303
14 – Reencontros (?) 311
15 – Quatro breves atos 316
16 – Beagá, cidade flutuante. 325
Passeios
Gêmeas Naiara e Esteer eeram. Com que pequena diferença. Esteer, a de cabelos bem pretos, Naiara leve névoa dourada na cabeça, não propriamente aloirada, ambas com no rosto suas covinhas, como convinha à sua feminil delicadeza. Duas que sempre, sempre juntas, até em perguntas de pensamentos. Então, em sábado azul-dourado, as duas, em escutas.
Minha nossa! Lá vinha o homem da vassoura.
— De novo! – Naiara disse.
— Parece que agora é todo dia... – Esteer não desdisse.
Elas até gostavam de vê-lo trabalhando, era um rapaz forte, meio rechonchudinho, de pele bem escura, com a sua carga de vassouras todas amarradas e entrançadas umas nas outras. Vassouras de pelo azul, vermelho, de piaçava, compridos vassourões de teto, rodos, os cabos também de diversas cores. Mas como é que ele aguentava aquele peso todo nas costas é que elas não entendiam.
Por isso é que também se agoniavam quando o viam, sempre ficavam com pena dele. Tão de manhãzinha e já com aquele sofrimento pelas ruas. Melhor, quando elas o ouviam. Porque já lá de longe já dava para saber que ele estava chegando. Que voz forte e bonita que ele tinha, e também meio triste. Quando crescessem, queriam ter um namorado com uma voz que nem aquela.
*
— Ah é, é? – Naiara ou Esteer.
— Vamos ver se não! – Esteer ou Naiara.
E então deram uma corridinha assustada, mas pisando com firmeza a calçada do outro lado e, ato contínuo, viraram a cabeça para trás, lançando um olhar atrevido ao carro e ao surpreso motorista, que já estava bem perto.
— Viu, patetão, quem é manda aqui na parada? – Esteer desafiou.
— Seu Mané! – Naiara detonou.
Mas que tinha dado um friozinho na barriga, tinha! Também, com esses motoristas ignorantes de hoje, e com os carros cada vez mais rápidos, bobo era quem desse bobeira na rua.
Ih, se a mãe delas visse o jeito com que elas tinham atravessado ali, ai, ai! Ia ser um sermão... Babau, adeus fim de semana na casa de Tia Tina!
Aliás, e agora? Se gastassem todo o seu dinheiro com dois pedaços – um para elas e outro para sua mãe – daquele bolo alemão gostoso ali da padaria, não iam poder comprar um abacaxi para tia Tina, lá na feira de Cidade Pomar. E agora? Bem feito, quem mandara serem bobas, cada uma devia ter pedido mais dinheiro pro seu pai, da última vez em que ele estivera na sua casa.
Se arrumara outra família, problema dele, sabiam que tinha lei para proteger crianças na situação delas. Como diziam os adultos, hoje em dia a gente não faz nada com dinheiro: só compraram dois bombons, um batom igual ao da tia, alguns pacotinhos de figurinhas dos “Rebeldes” e só tinham agora pouco mais de dez reais; precisavam ter uma conversa séria com seu pai.
O jeito era se informar se sobraria troco o suficiente, assim pegaram o caixa onde atendia Rose, vizinha e amiga de sua mãe, mesmo com a fila mais longa:
— Oi, lindas, vieram trazer lanchinho pra sua amiguinha?
— Ah, tá! Nem eu comi nada ainda! Agora que a mãe levantou!
— Nossa, que mulher preguiçosa e malvada... Se umas coisinhas lindas assim fossem minhas filhas com certeza que iam ter tudo na caminha. Não ia nem deixar vir na padaria nessa idade!
— Qualé jacaré, vamos fazer doze anos sábado que vem!
— Mas que chique, gente! Doze aninhos! Sua mãe vai ter que fazer uma festinha bem legal, ah, se vai!
Legal mesmo, assim já tinham adiantado um pouco a conversa que a mãe queria ter com Rose, para que ela ajudasse a preparar as coisas da festinha. E dela iriam querer de presente um daqueles bolos, ou tortas, que ficavam na vitrine de vidro que rodava, um daqueles todo colorido, brilhante, com creme escorrendo dos lados e pedaços de frutas brotando em cima. A mãe tinha falado que, para quem trabalhava lá, a dona da padaria fazia mais barato.
A dona Flávia tinha olhado esquisito para elas, quando lhes entregara os dois pedaços de bolo alemão. Como o dinheiro delas não ia dar mesmo para comprar o abacaxi e os bolos, Rose lhes dissera que levassem os bolos mesmo assim, depois dariam um jeito, ela ou sua mãe pagariam. Então, para não atrasar a fila, a própria dona tinha ido lá pegar os brownies e lhos entregara. E aí lhes dera aquela olhada estranha, como se estivesse triste.
Elas primeiro, acharam que dona Flávia estava fazendo cara feia pelo fato de elas levarem a mercadoria sem pagar, mas depois entenderam que era uma tristeza diferente, até parecia que ela queria dar os brownies de presente de aniversário, mas não podia.
Esteer explicou, querendo parecer inteligente à irmã:
— Por causa de que senão ia faltar dinheiro no caixa, e eles não ia ter dinheiro pra comprar as coisas pra padaria e o marido dela ia achar ruim... né, Nai?
Mas para Naiara não podia ser por isso, a padaria deles era tão chique, tão cheia de coisas gostosas, e o dinheiro dos bolos devia de ser uma merreca de nada para eles. Então, discordou:
— Ah, coitada dela, vai ver que já tá acostumada a não dar nada pros outros... Coração de pedra deve deixar a pessoa triste, né, Teté?
Também, com aqueles meninos de rua na porta da padaria deles a toda hora, imagina se fossem dar tudo que tivessem vontade pros outros.
*
Se até então vinham subindo, leves, leves, a pesada Ladeira São Bento, de mãos dadas, cheias de uma genuína e gêmea alegria, triste ficaram foram elas, no que foram se lembrar – bem-feito – dos coitados dos meninos de rua, vestidos com suas fomes, tristezas e molambos:
— A vida deles parece um molambo, né, Teté? – agora era hora de Naiara tentar parecer inteligente para Esteer.
Quando crescessem, a última coisa que queriam ser na vida era dona de padaria ou de supermercado, devia ser muito chato e muito triste ficar que nem polícia, proibindo tanta gente com fome de comer tantas coisas gostosas, parecia até pecado. De qualquer forma, estava garantido o abacaxi da tia.
Iriam ver novamente a casinha de abacaxi. Tomara que o caminhão estivesse lá em Barcelona, naquele domingo.
— Hoje é sábado, hoje eles devem tá em Laranjeiras. Será que dormiram lá nessa noite? Nossa, nesse frio... – Naiara, elas já quase ao fim da ladeira.
Mas, lá debaixo da lona devia ser tão quentinho, e também ela tinha visto umas cobertas penduradas no varalzinho deles, vira até botijão de gás e panelas escondidos num buraco feito no meio dos abacaxis. Claro que eles dormiam e faziam comida na carroceria – era a casinha de abacaxi deles.
— Eu bem que queria um dia dormir dentro de um caminhão... Que nem quando nosso avô levou todo mundo em Aparecida do Norte – Esteer, elas já saindo da Ladeira e entrando na rua Pereira Pinto.
A tia Tina tinha contado que tinha ido todo mundo embolado debaixo da lona, viajando a noite inteira. Que bagunça eles deviam ter feito na estrada! Dormir na carroceria de um caminhão era bom, mas não no chão duro, como o colega de escola Ivo. Com certeza tinha vindo para a rua, durante a noite, sexta-feira ele sempre fugia de casa e vinha direto para a Praça Costa Pereira passar o final de semana. Não, tinham achado melhor não ir até lá no meio da praça, depois que haviam saído da padaria.
Daquilo, a mãe delas realmente não iria gostar nem um pouco. Tinham ficado de longe, procurando pelo garoto, observando os meninos e meninas de rua que já tinham acordado.
Como zumbis que saíam de túmulos ajardinados, alguns deles cheiravam um resto de cola que ainda havia nos tubos; outros perambulavam sonolentos, à espera de passantes que lhes dessem qualquer coisa que se assemelhasse a um café da manhã, numa abordagem ao mesmo tempo raivosa e chorosa.
Todos eles parecendo estar prestes a brigar uns com os outros, suas gírias presunçosas varando a praça, gritos que quereriam parecer ameaçadores, adultos, mas que se revelavam apenas sons cavernosos ou esganiçados – brotados de gargantas arranhadas pela droga e pelo frio, gritando, ora parecendo querer esconder, de si próprios e dos outros, a perplexidade e o desamparo pelo fato de estarem ali, expostos, ora parecendo querer chamar atenção sobre si, sua nudez e exílio.
O vento que vinha da Beira-Mar entrava pelo meio das altas árvores e rodopiava para baixo e então aquela mistura de mar e mato atenuava o cheiro de mijo que ainda pairava forte na praça – era sábado, o caminhão que lavava as ruas estava atrasado. Dali a pouco ele chegaria e todos teriam que se levantar de vez, inclusive seu amigo Ivo, cujo corpinho magro elas insistiam em descobrir a distância, entre aqueles garotos e garotas que ainda se cobriam até a cabeça com cobertores rasgados, e que elas imaginavam fedorentos, sujos.
Mas eram mesmo uns comédias aqueles que dormiam em cima da grama, será que não sabiam que era terrível para o peito pegar a friagem que vinha da grama a noite inteira?
Jade
as maçãs do amor
Jade de verdade não estranhara quando o rapaz insistira em saber se esquecera uma sacola de maçãs, lá na barraca da família dela, na feira do Centro de Vitória. Ela teve que negar umas três vezes, mas já estava acostumada. Por fim, ele se convenceu quando Jade disse que ele poderia até ter esquecido, mas que outro cliente poderia ter levado.
Aí a dúvida dele passou a ser outra:
— Gente, será que tem gente assim neste mundo? Carregar as coisas dos outros, assim...
Aí, dona Jandira, diligente e vigilante mãe de Jade, se meteu:
— A gente vê cada coisa aqui, amigo, tanto dos clientes quanto dos feirantes.
E por aí iria, ou por aí terminaria. Mas havia aquilo que Jade estranhara. A insistência natural, quase ingênua, com que o rapaz olhava para os seus seios, com marquinha de biquíni. Estava com uma dessas blusas mais curtas, que deixavam entrever barriga e colo, mas o olhar dele era, naturalmente, atraído pelos seios, que se não insinuavam os bicos, mostravam parte razoável do lado de cima.
Ele não olhava com vulgaridade ou a com típica e patética arrogância machista; ao contrário, era admiração e mesmo respeito. E como já estavam no fim da feira, puderam esticar a conversa. E, por essas tais coincidências da vida, a família dele morava no Araguaia, zona rural de Marechal Floriano, mesma localidade da família dela; ele se declarou chamar Luís, da família tal e tal, e que estava com saudades de lá e etc e tal.
E ela, então, imediatamente começou a sentir formigamentos nas regiões próximas ao sexo, como fosse um zumbido gostoso do lado de dentro da pele. E também na região dos próprios seios, parecia que eles cresciam, inchavam e que a qualquer momento fariam os bicos pressionarem o tecido fino, salientes.
Coisa de moça virgem, coisa de moça que ainda não provara da fruta quente e gostosa, como diziam suas amigas de roça e de escola. E, aí, por qualquer motivo o corpo acende, sente vontade de fogo e de vibrações. No caso dela, deve ter sido por ela, rapidamente, ter fantasiado ela e o rapaz juntos, deitados, pelados, num pasto ou mato qualquer, lá na terra deles.
Claro que ela disfarçou com ele, já aprendera a ficar relativamente tranquila nessas ocasiões. Mas a coisa deve ter jorrado dentro dela, não somente porque ele era bonito e gostoso, devia ser mais por causa da voz, do jeito dele, mas pena que havia no dedo a aliança de casal; bem sortuda devia ser a moça que se casara com ele, porque, sim, devia ser uma mulher nova, porque ele também era novinho. E ainda por cima, tão novo e mais ou menos bem colocado na vida, era funcionário público da Secretaria de Educação, na Prefeitura de Vitória.
— Bom saber, quando a gente tiver algum problema com esses seus colegas preguiçosos, lá no setor de feiras da Prefeitura... - mãe de novo se metendo, marcando território de mãe, pois que percebera o encantamento do rapaz e a ainda leve perturbação da filha, já com tão pouco tempo de conversa.
Mas, fim de festa, seu pai começava a desmontar a feira, e ficou por aquilo mesmo, seu formigamento e aquele seu jeito meio abobado-sorridente, quando aquelas coisas aconteciam. Despediram-se. E ele levou outra sacola de maçã. E certamente voltaria na outra semana, comprando mais maçãs e admirando as maças dos seus seios – e trazendo mais formigamentos?
Mas aí a coisa já ficaria séria, ela teria que se precaver, negar, sufocar os formigamentos; afinal, isso de mexer com homem casado era fria. Ainda mais no caso de Jade, que tinha tantos rapazes atrás dela. Tudo bem, a maioria eram uns chatos ou patetas, mas fazer o quê? Nem todo mundo podia encontrar um Luís na vida, um Luís livre, quer dizer.
Se bem que com aquilo de maçãs, fruta quente e dura, seios e formigamentos, nunca se sabia, a mulher era envolvida e pronto – mas somente se ele estivesse separado de verdade, a esposa-jovem dele triste ficaria, mas fazer o quê, cada uma lutava com as armas que tinha.
Jade e Louis
Só que não. Só que Jade de verdade não passou nem perto de exigir brigas, rusgas e separações para a Luís se entregar, de verdade.
Pois se com aquilo de maçãs, fruta quente e dura, seios e formigamentos, nunca se sabia, a mulher era envolvida e pronto, imagine-se então no caso de moça, mulher virgem e agora ardente Jade. Ah, foi só Luís continuar a ir até a barraca por mais algumas semanas, foi só comunicar que iria a Araguaia numa sexta-feira, foi só combinar de visitar a casa dela, e pronto, o formigamento atingiu sua quentura e gostosura culminantes. O que viera se acendendo aos poucos, a cada domingo de feira, estava pronto para virar labareda em Jade, de verdade.
Ainda mais quando. Quando Luís lhe convidou para ir até a casa da família dele. Claro que ficou subtendido entre eles que não haveria visita nenhuma, e sim aventureiros passeios de moto pelas matas, montanhas e estradas afora. Ainda mais quando. Quando Luís caprichou com aquela ternura que punha na voz e no o olhar, toda vez que conversavam.
Por ocasião do convite para o passeio, aquela ternura se manifestou ainda mais intensa, como se a dizer a Jade que ele de verdade a alegraria e a protegeria, e que seria da maneira que ela quisesse que fosse. A voz e o olhar de Luís transmitindo-lhe confiança, uma silenciosa mensagem de que ele não era um mero animal desejoso do corpo dela; ao contrário, era como se ele estivesse ali para servir a ela, como se ele estivesse atendendo a um chamado dela, Jade, de verdade.
*
Por essas e outras é que Jade se entregou de verdade a Luís, em altas e relvadas paisagens. Ela sentira que chegara sua hora de se fazer mulher, de se entregar, não apenas a um homem, mas à ânsia de vida que habitava dentro dela. E que queria deixar jorrar de uma vez por todas. Luís a despertara para isso, ele simplesmente fora o instrumento enviado para o acontecimento.
Por isso ela se sentia tranquila, tanto pela gentileza que havia na aproximação e na sedução dele, quanto pelo desejo que, também, aos poucos, crescia nela. Ela sentia que era ela quem queria, e sentia que Luís a deixava livre e tranquila para comandar o jogo amoroso e erótico entre eles.
Aliás, por falar em instrumento, como seria o dele, tamanho médio, delicado, cheiroso e limpinho, que era o que combinava com ele. Tomara. Aquela safadinha da Aninha, que trabalhava no supermercado e vinha todos os sábados, muito lhe instruíra. Depois que conhecera Luís, passara conversar mais com ela pelo celular.
*
Tudo por tudo, achava que estava indo tudo muito bem. Não tinha nem mesmo preocupações com relação a se apaixonar por Luís. Se isso tivesse que ser, seria uma outra história, ou um outro capítulo . Mas, no fundo, lá no fundo de seu sexo e de coração, achava que seria coisa de apenas algumas semanas e voilá – adorava aprender Francês na escola. Talvez até tentasse vestibular para Letras, só por causa da paixão pela língua.
A vida viria ao seu encontro, do jeito que tivesse que ser. Certamente não com um homem casado. Transar e namorar uns tempos, sim, desfazer uma vida a dois, nunca E Luís parecia saber disso, parecia jogar o mesmo jogo honesto, lúcido, contido. Não parecia lhe transmitir paixões e separações.
Engraçado, ela invertera totalmente o seu pensamento acerca daquelas coisas, acerca de sua primeira entrega a um homem. No começo, toda renitente, resistente e se achando a rainha da cocada preta – sexo, transa, só com homem livre, Luís queria intimidades, que se separasse primeiro. Que postura adolescente, imatura. Tinham sido a postura de Luís, ao mesmo tempo singela e insistente, e as conversas com Aninha, ao mesmo tempo apimentadas e esclarecedoras, que a haviam mudado tanto, da água para o vinho, praticamente.
Sorria. A vida encantava, jorrava. Principalmente em manhãs de sábado e, naquele próximo fim de semana, com certeza transbordaria, ela transbordaria todas as suas águas e hormônios, nela mesma e em Luís. O seu Louis, o seu primeiro. Ah, adorava Francês, ah, adorava a vida.
Verdoso e veludoso leito nupcial
Mas, se Luís pacientemente deixara Jade guiar o ritmo e os passos de suas danças e contradanças amorosas, Jade de verdade já não podia dizer o mesmo agora, agora que a coisa começava de fato.
No sexta-feira já à tarde, antes da feira do sábado. Já por aí Jade se deixou agarrar e ceder comando. Ele tinha que voltar para Vitória no sábado à tarde e ela tinha a Feira no sábado de manhã. Somente lhes restava a sexta-feira, naquele primeiro encontro em terras deles.
Então se deixou convencer a passear com ele naquela mesma tarde. Era Luís quem agora os pilotava, tão impetuoso e seguro de si, como no comando da moto que os conduzia por estradinhas e trilhas de Araguaia e região.
Era uma dança viva e ruidosa, aquela demorada andança pelas montanhas da região serrana. Por altas e relvadas paisagens. Demorada, sim, pois que não podiam correr o risco de encontrar muitos conhecidos, nas proximidades de Araguaia quase todos conheciam Jade, de verdade, sabiam que Luís era casado. Os dois tinham muito a perder. Por isso, para cada vez mais longe e discretos lugares.
Afinal, já tinham decidido silenciosamente – Jade de verdade já concordara que seria naquela tarde a sua entrega a Luís. Mas, embora agora no comando, não houvera sôfrega e cretina pressão por parte dele, a apenas saudável, bem-vinda e máscula manifestação de sua vontade, de sua querência da presença e do coro dela.
E Luís sabia aonde queria levá-la. Numa daquelas colinas relvadas de verde suave e veludoso, capim balançando pelo vento das alturas. Lá para os altos de Matilde. Ele parou a moto bem no alto fim de uma trilha e foram andando um pouco pelos pastos. Aí, depois de mais uma subida, a verdejante surpresa: uma espécie de ampla bacia relvada, cercada de mata por todos os lados. Jade conhecia bonitas paisagens na sua região, mas aquela superava todas as outras em delicadeza, aconchego e discrição, parecia ter sido feita de propósito, por mãos de gente.
— Num parece uma cama natural?
Ela sorria, encantada. Ele aproveitou o seu embevecimento e lhe deu o primeiro beijo, demorado, guloso mas também delicado. Ao qual ela respondeu com toda intensidade. Finalmente os formigamentos e frissons de seu corpo adquiriam consistência, começavam se acender. Ele a puxou mais para perto, e ficaram com os corpos colados, sexo contra sexo, ele deslizando as mãos pelas suas costas e pelas suas nádegas. Por fim, desgrudaram as bocas e línguas e ficaram uns momentos apenas abraçados, acariciando-se. Jade nada temia, e já não tremia de ansiedade, como antes do beijo. Ele:
— E a não parece uma pedra de jade, num parece que foi feita para uma garota de nome Jade?
O seu cretino e delicado sedutor não tinha apenas tudo na ponta da língua. Tinha também, dentro da mochila, tudo que precisavam. Toalha, uma pequena almofada e até água. E uns chocolates para adoçar ainda mais o encontro, depois .
Ela continuava encantada, apenas a sorrir-lhe, e estava um pouco tímida, sem jeito. Não pelos beijos e lambidos, embora poucos, tinha lá seus amassos, nem por estar perdendo a coragem, mas por sentir que estava dando um dos passos mais importantes de sua vida. Importante e complicado, para uma jovem sem experiência, e isso era o que a deixava meio sem ação.
Para dissimular e demonstrar desenvoltura, abriu enfim a boca beijoqueira e lhe fez pedido inusitado:
— Já que é uma cama feita pra mim, faz de conta que sou sua noiva, e me carrega nos braços até lá.
Luis de fato se admirou de sua espontaneidade, inventividade. E se sentiu lisonjeado por ela se declarar sua noiva. Mas não quis se demorar muito nessa última parte. Afinal, era casado. Mas sabia que Jade não o dissera por maldade com a sua esposa, apenas por poesia, sensibilidade. Combinava com o seu jeitinho meio meigo, meio combativo, próprio e uma garota das montanhas.
E, claro, fez de verdade o que a sua Jade lhe pedia com tanta sinceridade. Eram da mesma altura, mediana, mas ele bem mais forte. Fácil ajeitou-a com os braços em suas costas e suas coxas e, dócil, ela se aninhou em seu peito e em seus ombros. O trajeto era curto, mas demandava cuidados. Mais ou menos no centro do veludoso relvado, ele lhe beijou, novamente demorado, e depois disse a Jade para escolher o lugar de seu leito nupcial.
Ela não se apressou, olhou por todos os lados, pedindo a Luís que desse uma pequena volta. E acabou escolhendo ficar na parte mais alta, um pouco perto da mata. Ainda com a garota nos braços, subiram para o leito nupcial de Jade, de verdade.
N e v e
A mais estranha estória
Em estranhas terrras, em estranhas terras, tristes fatos: florescem na neve cruzes e corações atormentados, assassinados no mesmo instante - e, absurdo e admirável ato, assassinados por si próprios.
Já se vê que, para nós, são de fato estranhas essas terras, pois que de neve são, de leve e alva neve se enfeitam.
Mas são também estranhas as nossas terras para os de lá de cima do mapa-mundi, pois que moradores do Sol somos, no Sol ora nos quentamos ora nos sufocamos, o Sol ora aquecente ora quase assassino, e nós moradores não tão alvos e altos quanto lá no alto do tal mapa do mundo - morenalvos e morenegros, nós. No fim, todos estrangeiros uns para os outros?
Eu lembro. Na roça, as mãos apertadas, o corpo encolhido, a gente em manhãzinhas frias ia:
- Vamo quentar sol!
Mas o tal do mapa-múndi é um tapa; um tapa na cara dos nós cá do lado de baixo no mundo, um tapa na cara dos nós, ainda, de cabeça baixa. Otários, os gringos do Norte-Europa, achando que a gente ainda vai cair nessa por muito tempo. Tá pra se ver, em breve, quem vai cair e quem vai cruzar a ponte, para além do admirável e assassino Ocidente.
Mas, no caso das cruzes e dos corações, é a mesma estranheza, que envolve tanto os de lá quanto os de cá, através dela nos irmanaremos, um pouco que seja, a esquecer o confronto planetário que se aproxima.
*
Vencidos esses temas das distâncias, ganâncias e marxistas revoluções, que não são tão menores assim, rumo então à estranha estória:
a mais estranha estória
que alguém já escreveu
Como diria o moço Roberto Carlos. Não que eu tenha a pretensão de escrever a mais estranha das estórias, apenas me lembrei desses versos, que sempre me deixam assim, mui triste e agoniado, com no peito um pesaroso peso. Sabe-se tenho pretensões ao choro e à tristeza, portanto, tenho também natural vocação para a tristeza presente em alguns dos poéticos cantos do menestrel capixaba. E sabe-se, também, que tenho forte e doentia vocação para escritos inacabados.
Mas vamos até lá - quem sabe chegamos até o fim deste escrito em particular. Aliás, apresento-me: Ilídio, ao seu dispor, e ao dispor da Voz. Embora a Voz não tenha sido muito generosa comigo, ela tem sussurrado mais a U., Olavo, González e, principalmente, a Lázaro e Helena.
Vamos à Aldeia - aproveito para reverenciar mestre Faulkner, claro.
Pois que não era uma cidade, era mera aldeia, o que aqui em terras de Brasil chamaríamos de distrito. Na aldeia nevava, à época dos – ao menos para mim – sagrados acontecimentos.
E os seus moradores já haviam se habituado à cena de quase todas as noites. Em meio ao frio, e envolta por aquele contraste da escuridão da noite com a alvura da neve, Elsie, a mulher de coração atormentado, passava, atravessava quase toda a vila.
Pois a casa de seu ex-namorado, Robert, o homem de coração ainda mais atormentado, ficava quase no outro limite do povoado. E ficava poucos metros adiante de um bar, um dos poucos da aldeia, por óbvio (viciei-me nessa expressão, tal qual Lázaro e Helena). Então, para a maioria dos moradores, homens ou mulheres, fosse por presenciar o fato, ou fosse porque algum familiar lhes contava, a estranha estória já se tornara conhecida de todos quase – até de crianças.
Ela vinha desde longe, ereta, altiva, bela, mas de olhar triste, e sem falar com ninguém. Não que não conversasse com as pessoas no dia a dia. Claro que o fazia, como qualquer um, e sobre qualquer assunto. Mas não naqueles momentos, não naquelas noites.
Os gritos
- Robert! – havia uma mistura de esperança, súplica e tristeza na voz de Elsie, naquele seu primeiro chamado, postada imóvel, em frente à casa de madeira.
Via-se que havia gente lá dentro. Elsie sabia que ele estava sempre lá, como se à sua espera. Ela aguardava, olhos fixos na porta da casa. Ela o imaginava em meio aos seus muitos livros, ou então de pé, na sala, exatamente à espera do chamado dela.
No bar, além de ouvir, as pessoas como que viam ou adivinhavam o silêncio que emanava lá da sala.
- Robert! – no segundo grito o que havia já era uma mistura de desalento, mágoa e incompreensão, como se Elsie dissesse a Robert que lhe era impossível entender suas atitudes e sua teimosia; e que ficava muito triste com tudo aquilo.
Enquanto isso, já se fizera um silêncio sepulcral no bar. Todos aguardavam o desfecho já conhecido. E havia muito que algumas amigas de Elsie já tinham desistido de convencê-la, parar de acreditar que Robert iria conversar com ela e voltarem a viver juntos.
- Robert! – agora, no terceiro grito, ela era puros desespero e apreensão, misturados com lágrimas, mas não ainda aquele lacrimejar cascateante, que é imposto aos condenados, ou eleitos, para viver uma vida de sofrimentos neste mundo.
Lá fora, o silêncio hibernal, tornado quase eternal. Nenhum ruído oriundo da casa, nenhum sinal de ira ou perdão, sequer escassa promessa por parte de Robert.
No bar, a tensão se intensificava ao máximo, sabiam que o desfecho da noite vinha com o próximo grito de Elsie. Tirá-la antes da explosão - como e para quê? Já o haviam feito uma vez, e ela simplesmente voltara duas noites depois, tudo simplesmente se repetindo. Nada a fazer, senão esperar. Não podiam dizer que Robert cometia algum crime, não podiam alegar insanidade mental de Elsie, enquanto a coisa ficasse naquela espécie de simulacro, ou de teatro perigoso.
E, então, lá veio o quarto, o último e sempre lancinante grito de Elsie:
- Robert! – o que restava mais de sentimentos, para aquela mulher colocar em suas palavras e em sua alma? Fragilidade, perplexidade, nostalgia, e lágrimas, dessa vez muitas lágrimas; o seu corpo já não era ereto, firme, combativo, ele era um puro e convulsivo tremor. A esperar, a esperar, a esperar o enlace e abraço e reabraço e rearranjo de suas vidas, que ela sabia que nunca vinha da parte de Robert; mas sempre um outro desfecho.
Nossa, somente de somente lembrar sopra nas gentes a semente de um arrupio, um aperto, não apenas no coração ou nos ouvidos, mas na própria alma.
Então, durante a quarta súplica de Elsie, sempre ocorria. A coisa. O desfecho, como dizia o povo da cantina. Mas jamais era o que Elsie esperava, muito pelo contrário.
Os tiros
A pesada porta de madeira da casa de Robert se escancarava com um estrondo. Ele a abria com as mãos e, depois, dava-lhe um violento, raivoso chute com o pé direito.
Mesmo sabendo o que a esperava, Elsie caminhava ao seu encontro. Distância entre eles era coisa de uns oitenta metros, coisa de uns vinte carros enfileirados, ele adorava um gramado e um quintal amplos. Andavam, um de encontro ao outro. Ela, armada com suas dores e suas lágrimas e, sempre pareceu a alguns, também com um sorriso teimando em florescer no rosto.
E ele, armado, mas armado de verdade, com um desses fuzis antigos. E armado com amargura no rosto. Mais ou menos na metade do caminho, ele disparava, ou melhor, começava a disparar seu rifle para cima de Elsie, a mulher que se tornara puras lágrimas.
Robert disparava e disparava, mas nunca para matar ou ferir, apenas para fazer com que Elsie saísse de frente da sua casa, sumisse de sua vista.
E ela contava com isso, sabia que ele não a mataria nem a feriria, por isso continuava a avançar, sabia do poder de sua presença junto a Robert. Somente precisava de uma chance, uma oportunidade para conversarem como pessoas decentes, para se explicarem.
Enquanto tal, as balas zuniam raivosas em volta dela, como se emissárias da própria raiva de Robert, e como se fizessem de tudo para ferir Elsie de morte, apesar da pontaria precisa e calculada do atirador. E o corpo e a alma de Elsie, no fundo, no fundo, tremiam, sim.
Ela chorava, sentia medo, mas também imensa alegria, somente por estar por estar perto de Robert, por poder vê-lo e saber que era vista por ele, tudo isso ao mesmo tempo. Como até pouco tempo atrás.
Mas os moradores da Aldeia, principalmente os homens e mulheres que estavam na cantina àquela hora, sabiam que, numa noite qualquer, aquilo não iria acabar bem. Por isso viam como seu dever correr até lá e, entre gritos e xingamentos, exigir que Robert parasse com aqueles tiros sem razão de ser. Senão, eles também iriam botar para fora as suas armas, e aí a coisa iria se resolver entre homens.
Afinal, o que a pobre Elsie fazia para merecer aquele destempero todo de sua parte? Apenas o chamava, e o chamava de bem longe de sua porta.
Robert silenciosamente concordava e, então, de forma pacata, apenas pedia que eles a retirassem de frente de sua casa, levando-a de volta para a casa dela. No que Elsie, surpreendentemente, concordava de forma também pacata, sem atritos ou berros. E, então, era aquele caminhar de todas as noites, como se fosse uma pequena procissão, de volta à casa de Elsie. Por coincidência, o povoado era predominantemente católico.
E lá, em volta de Robert, reunia-se sempre um grupo, a tentar sugerir um fim para aquilo, encontrar uma solução, antes que as coisas acabassem muito mal.
Mas Robert era inflexível, fechado, quase mudo, no que dizia respeito às atitudes de Elsie e às suas próprias. Não, nem sempre fora assim; não, no tempo da presença da magia, do enlevo e do amor na vida deles, era óbvio que havia um Robert diferente. Mas não adiantava, ninguém tinha acesso aos seus sentimentos de agora, depois do demorado e, por fim, explosivo rompimento entre os dois. Pior, ninguém sabia as causas daquele rompimento.
E era a mesma coisa com Elsie, enquanto vizinhas e amigas a levavam de volta para casa. Um silêncio total, um mutismo quase absoluto. Mas, à diferença de Robert, ela dizia, sim, algumas palavras. Na verdade, apenas repetia súplicas e lamentos.
- Porque Robert insiste neste erro?
- A nossa vida está passando a cada dia...
- Para tudo há que haver perdão, meu Deus!
Mas, assim que encerradas as súplicas, havia sempre o mesmo contar e recontar da estória amorosa deles.
As palavras escorriam da boca e do peito de Elsie, cristalinas e frescas, como escorriam as águas das montanhas. E as mulheres, principalmente as mais jovens, ouviam fascinadas.
E, lá na casa de Robert, depois de algum tempo, havia também o desfiar da mesma estória, rememorada por ele ou por algum dos pouquíssimos amigos que ele recebia em sua casa. Como se fosse um espelho, aquilo que acontecia na casa de Robert e na casa de Elsie. Um espelho que se quebrara e que ferira, rasgara a carne e a calma alma dos dois, em comunhão, até então.
Robert, o solitário
Robert tinha trinta e oito anos, e havia já muito tempo era um sujeito isolado. Se houvera ou não alguma ligação, o fato é que, com a morte de sua mãe, o seu isolamento social se intensificara.
Para alguns, o isolamento dele pendia um pouco para a patologia, o doentio. Seu próprio pai assim via as coisas, e por várias vezes abordara isso com o filho. Mantinham aberto e corajoso diálogo, principalmente depois que Mrs. Madeleine, mãe de Robert, falecera. Com o falecimento, havia se estreitado entre pai e filho um convívio, por si só já camarada.
Mas Robert recusara, veementemente, qualquer abordagem patológica ou psiquiátrica de seu caso. Se aceitava conversar com seu pai, primeiro era pela camaradagem que havia entre eles. Segundo, por ter alguém a quem se explicar. Quanto a frequentar psiquiatras e psicólogos, e ficar a ouvir toda aquela lenga-lenga científica, isso jamais. Para Robert, a vida, com todas as suas dores e contradições, perplexidades e desamparos, assombros e êxtases, não podia caber em frasquinhos de comprimidos e falinhas de psicólogas – seu pai sugerira uma psicóloga ali da aldeia, e que tinha consultório na cidade.
Robert explicava que havia que se pagar um preço por viver para além das margens de segurança. As pessoas comuns, dizia ao pai, nasciam com uma proteção natural contra a estranheza, não precisavam se alimentar do recolhimento. E muito menos viam e sentiam nas coisas do mundo uma Presença indecifrável, silenciosa que, também em silêncio, convocava os estranhos como ele, para reverenciá-la.
Mr. Hilton, é claro, assustava-se muito, nas primeiras conversas em que Robert lhe falava dessas coisas. Dava o filho como caso perdido, que se embrenharia cada vez mais naqueles delírios, que o atraíam nos perigosos labirintos de uma mente que, por algum motivo, distorcia a vida, as pessoas e o mundo. Mr. Hilton já se via providenciando uma internação compulsória para Robert, numa clínica psiquiátrica, antes que fosse tarde demais.
Por outro lado, através de estórias ouvidas, e mesmo por ter visitado uma parente numa clínica, ele sabia o quão danosa e dolorosa uma internação obrigatória poderia ser para qualquer pessoa; o quanto de constrangimento, e mesmo abuso e humilhação, o paciente teria que sofrer, não por crueldade ou sadismo de médicos e enfermeiros, mas pela própria natureza do tratamento, uma espécie de choque de realidade, como forma de vencer as perigosas resistências do paciente.
Por isso adiava uma decisão tão difícil, procurava entender os argumentos de Robert, descobrir uma lógica real e consistente neles, aceitar aquela estranha mistura de desencanto e hostilidade com as pessoas próximas, e de entusiasmo e generosidade com o mundo fictício dos personagens de seus eventuais livros. Comoventes livros que o pai pressentia que, um dia, o filho haveria realmente de escrever. Além disso, havia aquela espécie de ternura e encantamento para com as coisas do mundo, que tomavam conta de Robert, em seus solitários passeios, dos quais direi mais, mais adiante; Mr. Hilton se encontrara com o filho, algumas vezes, por um ou outro motivo, durante esses passeios.
Tudo aquilo, aquela ternura com as coisas, aquela generosidade e empatia com os seus personagens, junto com o trauma de uma internação, faziam com que Mr. Hilton fosse adiando a sua decisão. E, então, aquelas estranhas e fascinantes conversas do filho foram assustando-o cada vez menos e, com o tempo, passaram a se tornar até mesmo fascinantes e instrutivas para ele, que não pudera frequentar uma faculdade.
Na verdade, as palavras de Robert começam a mudar, lentamente, o próprio modo de seu pai ver as coisas, as pessoas, o mundo, a vida. Chegara até mesmo a acompanhar Robert num de seus passeios, e gostara muito. As palavras e a postura do filho eram realmente magnéticas, chegava mesmo a sentir levemente a Presença da qual seu filho falava. Mas aí Robert e Elsie se conheceram, e o filho acabou adiando um novo convite para o pai acompanhá-lo em suas reverências ao mundo, como ele chamava.
*
Robert se formara em Filosofia e vivia lendo, a sua era uma dessas casas abarrotadas de livros. Os livros eram seus verdadeiros e únicos amigos. Nem mesmo com Elsie, depois que ela entrara em sua vida, ele podia conversar aquilo que vivia e conversava com os livros; o que, de forma alguma, diminuía a importância dela na vida dele – eram seus dois tesouros, eram o que justificavam a sua existência aqui na terra.
Para ele, então, o seu caso nada tinha de mais. Apenas a escolha pelo recolhimento, quietude e solitude, ao invés da vida barulhenta, presunçosa, repetitiva e, às vezes, até mesmo agressiva, da maioria das pessoas. De fato, não sentia nenhuma atração pelas pessoas, ou pelo convívio com elas. Na realidade, por algumas delas sentia até mesmo aversão, desprezo, pena. E ele assumia tudo isso, perante seu pai e os dois únicos amigos de infância, que lhe haviam restado, e com quem convivia de vez em quando. Assumia como suas escolhas, e não como patologia, desequilíbrio.
Na verdade, como dito acima, Robert tinha mesmo pretensões de se tornar escritor – como não poderia deixar de ser, em se tratando de alguém tão enfurnado no meio de tantos livros. Era, então, questionado pelo pai e amigos: como conseguiria escrever sobre as pessoas se não as suportava, se não via nelas algo a ser, senão amado, ao menos algo a ser tolerado, compreendido?
Robert não via nenhuma contradição nisso. Para ele, a principal tarefa do escritor era a de ajudar na construção, não de um mundo ideal, mas de um mundo menos estúpido e desumanizado. Para isso, o escritor deveria criar ou retratar os personagens que tivessem a ver com essa construção; ou seja, pessoas que estivessem à margem de nosso mundo massificado, uniformizado, um mundo no qual as pessoas são cada vez mais tomadas pela tecnologia, pelo conformismo, pela plastificação de suas almas.
Robert, então, declarava que essas pessoas marginalizadas, infelizes, derrotadas é que seriam a base da criação de seus personagens; e que, portanto, ele não precisava estar nem um pouco integrado ao mundo e à maioria das pessoas, para escrever os seus livros. Além disso, embora não parecesse, ele conhecia um sem-número daquelas pessoas que ele considerava como base de seus personagens, conhecia as suas muitas estórias, que, devidamente cruzadas, alteradas, enriquecidas, fornecer-lhe-iam as devidas situações, dramas, tensões.
Essas eram então, as bases teóricas do futuro escritor Robert, que, convenhamos, não eram lá muito originais; mas, ao menos, eram uma honesta justificativa que dava ao seu pai e seus amigos, acerca do seu recolhimento e de suas pretensões literárias. Talvez Robert realmente frutificasse como excelente e original escritor, mas... Uma pena.
Elsie, a doce
Elsie era uma dessas mulheres que emanam um odor indefinido, difícil de classificar, talvez como ela própria. Ela cheirava a uma mistura de coisas ácidas e de doçuras, um cheiro exótico. Para Robert, era como se ela cheirasse a limão e baunilha, a cereja e chocolate, tudo ao mesmo tempo; talvez fosse também por isso que ele levava tanto chocolate e cereja para ela e a mãe – uma espécie de reverência à mulher que amava.
Já ele tinha cheiro de mato, apenas; mais especificamente, cheiro de capim selvagem, relva de montanha.
Elsie tinha trinta e três anos, era alta, tanto quanto Robert. Cabelos completamente lisos e quase totalmente negros, não pendessem um pouco para o castanho. Era altiva, mas um pouco triste no seu caminhar, no seu dia a dia. De toda forma, impunha-se, aquele seu porte. Pois que Elsie: era doce e bonita o suficiente, ainda que, junto com isso, uma doce e bela tristeza.
Elsie às vezes ia e vinha entre ervas e relvas, neves e árvores – até parecia uma dessas últimas, com sua esbelteza e seu cabelo a cobrir-lhe a cabeça, como se fossem galhos enegrecidos. É que: Elsie às vezes simplesmente ia a pé, da aldeia até a cidade-sede, onde trabalhava.
Fazia-o apenas porque gostava de caminhar, estar em movimento e ao mesmo tempo estar só, junto do mundo e longe dos outros. Mas, por óbvio que as pessoas da aldeia estranhavam tal hábito, embora se tratasse de uma atitude bastante banal, apenas pouco usual. Porém, parecia que as pessoas tinham uma necessidade de estranhar, julgar e mesmo reprovar alguém, pelo simples fato de estar se comportando de forma diferente.
Alguns passageiros do ônibus, que ela deixava de pegar na aldeia, eram os que mais faziam questão de manifestar sua estranheza, reprovação ou mesmo deboche. Jovens e mesmo adultos chegavam a olhar para ela, das janelas laterais ou da janela traseira, uns rindo outros sérios, como se a condenando. Era simplesmente patético, pensava Elsie, séria, altiva, mas o que fazer?
Apenas lamentar a mediocridade e a falta de poesia daquela gente. Coitados, jamais viveriam aquela espécie de comunhão silenciosa, que se fazia presente entre ela e as coisas. Jamais ouviriam aquele apelo que brotava mudo das coisas, chamando para alguns momentos de convívio com o Mistério do mundo. Jamais sentiriam a carícia daquele enlevo que jorrava das coisas e lhe envolvia a alma.
E foram exatamente esses efusivos momentos de transcendência, com as coisas simples do mundo, que a aproximaram de Robert.
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AVISOS
Todos os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção, não se referindo, de forma alguma, a pessoas ou fatos concretos. Qualquer semelhança ou coincidência terá sido mera ficção.
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