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Conversa com o leitor

 

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​Uns microcosmos em Minas  

 

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         Os personagens de meus treze livros estão em constantes encontros, reencontros, confrontos, citando, analisando, criticando ou admirando uns aos outros. Vagam por cidades, postam-se em cenários, envolvem-se em dramas, reflexões e emoções compartilhadas, comuns ora a uns, ora a outros.

         Não, não se trata de uma obra – bastante extensa, por sinal, quase duas mil e quinhentas páginas – artificialmente construída, ou melhor,  ‘fabricada’ segundo fórmulas próprias de séries, mini-séries, continuações etc. etc. etc. enfim, passa longe de uma produção literária dessas do tipo netflix da vida.

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         Por óbvio, que não vale a pena, ao menos agora,  debatermos  ou debruçarmo-nos sobre o aspecto ‘artístico’ e moral desses ‘fabricantes’ de literatura. Embora a coisa já tenha ultrapassado em muito a perigosa linha vermelha, com o surpreendente e precoce advento da Inteligência Artificial a serviço da ‘criação’ cultural. Sabe-se que são ofertadas, à mancheia e na maior cara de pau, obras escritas por IA, e, pior, adquiridas e vendidas, também à mancheia e na maior cara de pau,  por pessoas que se apresentam, então, como ‘escritores’. Sem palavras. Apenas perplexidade, desdém e compaixão. E fé na Revolução Planetária Transcendente que porá fim a essas assustadoras e patéticas posturas. Há temas mais decentes a se tratar aqui – temas ao menos mais naturais e menos artificiais, mesmo que esses últimos sejam supostamente mais ‘inteligentes’, o que é de se duvidar.

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         Isso de criar um universo à parte, com personagens e cenários se repetindo, ou melhor, reaparecendo e se  reencontrando em obras diferentes, ou melhor, em múltiplas obras, tudo isso surgiu naturalmente, sem planejamento algum. Simplesmente me senti conduzido a retomar, nas obras seguintes, os personagens e cenas de minhas primeiras ou quatro obras. Registre-se que, até certo ponto, isso não acontecia, eu sequer imaginava tal devir literário, navegava nas águas da Palavra na mais santa e completa ignorância de onde iria desembocar, ou melhor, de quais riachos, e outros rios, o rio de minha obra iria se alimentar.

        Mas,  a partir de certo momento, creio que após o Isaía, Irma e Baiano, e no meio mesmo do Não ia te dizer, eu não conseguia mais parar esse processo de retomada e entrecruzamento de personagens e a coisa foi crescendo, ganhando em intensidade, diversidade e em novos personagens. A personagem Helena, narradora do Não ia te dizer, como que me inspirou a definir de vez esse grupo de Viçosa, como se ela assumisse o comando da narrativa, consolidando e acrescentado personagens e estórias relativas ao grupo de González, em Viçosa.

            E deu no que deu. Criei, dei vida aos inúmeros personagens e estórias contidos nos dez primeiros livros, todos escritos pelos membros do grupo que orbita em torno do espanhol González, filósofo, viajante e aventureiro espanhol, radicado em Viçosa, Minas. Naturalmente que, a esses dez livros, eu os chamaria de o Ciclo de Viçosa. O que não quer dizer que todos os personagens sejam oriundos dessa cidade nem quer dizer que todas as histórias ali se passem. Ouro Preto, São Thomé das Letras, Burgos (Espanha), Passa Quatro, Itamonte, Dentópolis (cidade fictícia) Juiz de Fora, Anaconda (Estados Unidos)  e, claro, Belo Horizonte, o coração das Minas, são algumas das cidades por onde decorrem estórias e cenas, por onde escolhem e escoam vidas e consciências.

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           Há também os últimos quatro livros, que eu chamaria de o Ciclo de Vitória, ou o Ciclo dos Mosaicos, já que todos os quatro livros têm essa última palavra em comum, seguida de seus respectivos subtítulos. Na verdade, essa última opção, Ciclo dos Mosaicos, talvez fosse a mais pertinente, já que nem todas as histórias se passam em Vitória, inclusive aquela se passa em Anaconda. Por outro lado, Vitória, ou referências a essa cidade, está presente na maioria das obras. Além disso, a ideia inicial era contar somente a história de Maurício, poeta, filósofo e escritor, nascido em Cataguases, Minas, mas cuja estrada acaba melancolicamente no malfadado serviço público, na capital capixaba. O centro do primeiro e único Mosaicos seria exatamente a abordagem de seus momentos finais, de  sua derrocada financeira, amorosa e existencial, exatamente em Vitória.

        E, de novo um estranho, inesperado e deleitoso magnetismo me instigou a fundir, aos poucos, e de novo sem quaisquer enredos prévios, os personagens e estórias criadas pelo grupo de Viçosa com  as estórias do Espírito Santo, que se passam no entorno de Maurício e do grupo do professor Marçal, historiador marxista, fundador da célula do PCO no Espírito Santo.

          Na verdade, já houvera um primeiro contato entre o grupo, através do caminhoneiro capixaba Nildo com o caminhoneiro mineiro Juvenal, tal como narrado por U. e Ilídio em Juvenal e Jandira. Ou seja,  antes mesmo do Ciclo dos Mosaicos já estava semeada ou prenunciada  a fusão do microcosmo de Minas com o microcosmos de Vitória – e, mais interessante, antes mesmo de eu sequer imaginar que, um dia, iria criar as estórias de Vitória, ou os Mosaicos.

         Ainda sobre a aproximação do  grupo de Viçosa com o grupo de Vitória, ou a fusão dos dois Ciclos de minha obra, caberá um papel fundamental ao transtornado e difícil Maurício. Com suas várias visitas a Viçosa, ele é quem irá consolidar essa aliança entre os grupos, de uma maneira mais formal e abrangente – política, literária e filosófica, e também afetiva-erótica – do que aquela promovida pelos caminhoneiros Juvenal e Nildo, com todas os seus esforços e entusiasmos, mas também limitações.

           E registre-se que essa aproximação de Maurício será facilitada, pela sua condição de primo-amigo-alma gêmea da estranha e fugitiva Eliza, tão ou mais transtornada do que o próprio. Eliza é de Rio Pomba, vizinha a Cataguases, e foi estudar em Viçosa, onde travou construiu uma singular, poética, fugitiva e, claro, transtornada, história com o também transtornado Ilídio. Veja-se, mais uma vez, que a futura ponte entre os grupos de Viçosa e Vitória, ou entre os dois Ciclos, já tinha o seu desenho mais ou menos esboçado. Nildo e Juvenal, Ilídio e Eliza, Eliza e Maurício. Posso parecer repetitivo, mas não me canso de me admirar com essas obscuras antecipações, conduções, intuições, com que a escrita  ou a obra nos presenteia.

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       E falar de algo inconsciente, de uma motivação aparentemente obscura, mas que ao fim e ao cabo seria explicada psicologicamente, cientificamente, para deslindar a questão, tudo isso seria um tanto ou quanto raso, não clarearia a obscura profundidade dos rios da obra – sei que a antítese raso/profundo e claro/obscuro são um tanto ou quanto óbvias, mas raramente resisto a um jogo verbal, mínimo que seja; ver-se-á isso à mancheia, nas falas de meus personagens, nestas duas mil e tantas páginas.

          Prefiro e insisto em algo mais poético e transcendente, ou delirante, para o deslinde dessa lida, dessa dúvida literária.  Coloco todas essas maquinações literárias na conta da Voz, como, aliás, volta e meia o fazem os meus personagens-escritores: Lázaro à frente, N., Maurício, Ilídio, U., e Helena, claro. Mas que Voz seria essa? Não o sei, e não vem ao caso saber, não cabe defini-la clara e distintamente, à maneira de sinhô Descartes.

          Em vez de seguir o implacável filósofo francês, sigamos, ou melhor, ouçamos a impalpável, transcendente e quase indizível fala de outro francês, o mestre Maurice Blanchot, ensaísta, especificamente ouçamos seus densos sussurros lançados em  O Espaço Literário.

         Por óbvio, já que se trata de sussurros, de algo quase indizível (embora desfiado através de milhares e milhares de palavras), não há como nem para que dizer muito sobre a coisa. É a Voz e pronto e ponto final. Quem tem ouvidos que a ouça.

          Mas a alguma palavrinha sempre se pode encaixar na coisa, sempre se pode encontrar para a coisa. A Voz do escrever é murmúrio inconstante, mesmo que nem sempre feito de palavras, mas, tão somente de intuições, esperas, aberturas, que irrompem, transmutam-se em frases, cenas e enredos, quais clareiras súbitas na floresta do tempo e do existir, ou na floresta da linguagem; embora eu ache essa palavra meio enjoativa, um tanto ou quanto técnica, boboca – acho mais poético e pertinente dizer fala, escrita.

         Escrever torna-se, então, o próprio ato de existir – tanto na espera quanto no durante. Não há possibilidade nem necessidade de outra motivação ou obrigação, para aquele que está fadado a estranho hábito num estranho tempo. Vive-se para escrever, vive-se de escrever.  

          Mas, interessante. O fato de que escrever, como sendo a própria fonte do existir daquele que escreve, advém exatamente de sua outra e oposta condição: escrever é perecer, é morrer, para mestre Blanchot. Escrever é uma espécie de testemunhar e celebrar, de perceber o seu próprio e incessante perecer. Eu morro, ou pereço,  cada instante, e tenho uma singular,  intuitiva e existencial percepção dessa condição.

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        Aqui, já podemos retornar à questão, ou à presença da Voz. A cada instante que perece, e a cada instante que percebe que perece, aquele que escreve é como que acometido, ou envolto, por um chamado, sussurro, a alertar para esse incessante perecer, ou simplesmente a convidar e convocar, aquele que escreve, para celebrar, registrar, canticar esse perecer e esse perceber desse morrer. Por isso, a impressão de se estar ouvir, ou a esperar, a inquieta, incessante e exigente... Voz.

        E, ao fim e ao cabo, entende-se, intui-se ou suspeita-se  que todo o processo de escrever foi conduzido por essa silenciosa e singular Voz. Desde a sempre inesperada e grata aparição – para aquele que escreve ­– da primeira frase, idéia ou cena, até a consumação do escrito, passando por tantas variações, situações inesperadas, inventivas, admiráveis e também complexas e até mesmo desgastantes – para aquele que escreve, claro – até a consumação definitiva, até a enfim última palavra. Parece que foi uma Voz que tudo conduziu, modificou, surpreendeu – aperfeiçoando ou empobrecendo, que seja, a critério do leitor ou daquele que escreve. Parece que, ao fim e ao cabo, e mesmo durante, há a recorrente impressão, ou intuição: não sou eu quem escreve, eu e minha obra somos escritos, ou, para mais simples, eu sou apenas instrumento de algo maior, ou simplesmente obscuro.

         E, ao fim de uma e começo de outra obra, ou seja, no recomeço da escritura, há a impressão, ou  a intuição, de que cada obra é apenas parte de um todo, de que o que ocorre, na nova obra, é meramente a continuidade do processo. Como se fossem emendas, laços se formando, elos se forjando incessante e recorrentemente, até o intérmino. Interminável. Essa é a palavra, impressão ou intuição. Como se a toda a obra fosse uma única fala – não importando quantos livros sejam escritos, quantos personagens apareçam, quão diferentes sejam as estórias. O que importa é cumprir a exigência da Voz, atender ao seu incerto, mas implacável chamamento, ou convocamento. O que importa é  sentir,  testemunhar e registrar, seja com que palavras forem, o meu perecimento de cada dia, ou de cada segundo.

            De outro lado, ou a complementar, não à toa há uma espécie de luto, e melancolia, depois de consumada uma obra, e às vezes até mesmo próximo ao seu final, quando aquele que escreve antevê o fim de seu singular existir no tempo próprio da escritura. Como se morresse um pouco junto com a morte daquela obra que se finda, como se temesse não poder continuar a  testemunhar o seu perecer, o morrer nosso de cada dia, ou de cada segundo. Duplas e estranhas mortes, duplos e estranhos pereceres, esse parecer literário-filosófico de mestre Blanchot. Mas o que importava, na abordagem do mestre francês, era explicar um pouco essa impressão, ou intuição, de que há uma Voz obscura a nos conduzir no processo da escritura. Espero ter logrado êxito quanto à referida explicação.

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          Sobre o luto, melancolia ou paralisia, que acomete aquele que escreve no findar da obra, alguns de meus personagens são envolto pela e singular sensação, principalmente, que é Lázaro é tomado pela coisa e discorre longamente sobre ela, ao final de seu Passa-Ouro: Ouro Preto; e sob outro ângulo, no Isaía, Irma e Baiano, é acometido pela paralisia e melancolia durante a  própria obra, no seu próprio centro, como diria Blanchot -  não no sentido físico, ou de número de páginas, mas referindo-se ao centro da obra para o escritor, que pode estar em qualquer página ou cena.

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        Ainda a propósito  da obra como perecimento, e como testemunha desse perecimento, poder-se-ia argumentar que a coisa não seria assim tão nobre, uma atitude tão corajosa, uma luta tão louvável e hercúlea travada por parte daquele que escreve. Poderia ser apenas e exatamente uma espécie de fuga da percepção do perecimento, melhor, da consciência de estar a morrer a cada instante. Pois para, alguns, e, entre eles, aquele que escreve, é incessante e onipresente a  condição de que somos todos ser-para-a-morte – em temas assim,não se pode passar ao largo de Heidegger, claro.

​       Escrever então não teria nada da nobre e corajosa e combativa de enfrentar, testemunhar e celebrar, mas tão somente da apavorada e disfarçada fuga para a frente, na inútil tentativa, que aquele que escreve faz, de  manter sua consciência presente no meio dos entes e do Ser, através de sua obra, mesmo após o seu morrer. Enfrentamento ou fuga, acovardamento ou testemunho? Pão ou pães, questão de opiniães – afinal,  o nosso mineiro e maioral Rosa, e o seu sertanejo cavaleiro andante Riobaldo, são também afeitos a essas densidades e  perplexidades existenciais, sabe-se. Aliás, em verdade, em verdade eu vos digo: para mim, James Joyce e Guimarães Rosa são os dois maiorais planetais, o que não significa desmerecer a plêiade de astros da Palavra a orbitar próxima a eles: Faulkner, Mann, Beckett, Proust, Zola, Sartre, e tantos outros.

​          Por fim, uma advertência, ou álibi. Em nenhum momento da feitura deste roteiro, mormente quando comecei a remeter o ato de escrever ao nosso perecer, fiz questão de não ir diretamente até a obra do mestre Blanchot, bem na estante aqui ao meu lado. Fiz minhas elucubrações de memória, não quis exatidões e citações em excesso. Quis algo meu, uma espécie de diálogo e homenagem ao mestre francês. Por isso, releve-se qualquer impropriedade ou presunção de minha parte, em relação às falas e sussurros de Blanchot. Como disse, foi intencional, quis o risco.

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           Sabe-se que isso não é novidade em Literatura. O denso-melancólico Faulkner, por exemplo, criou um complexo microcosmo, no fictício condado de Yoknapatawpha, retratando o mundo do sul dos Estados Unidos, com tragédia, poesia e agudeza psicológica. Mas lá a coisa era mais comedida, ou equilibrada. As referências cruzadas eram menos recorrentes, ou obsessivas.

​         Aqui, quando juntados os integrantes dos dois grupos, são muitos mais personagens, são muitas mais histórias que se cruzam, com visões diferentes de uma cena, de uma emoção, de um outro personagem, dependendo de quem as vive ou presencia. Sem contar os constantes deslocamentos e viagens, principalmente do grupo de Viçosa. Parece que o pessoal de Viçosa não consegue ficar sem se movimentar, em constantes visitas  aos entes do mundo. Se isso é feito com a mesma maestria do também incansável Faulkner, isso é outra história, e obviamente nem era essa a pretensão.

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